segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Conto: Presente - Parte 3


Clique aqui para ler a parte 1, e aqui para ler a parte 2.

Passei algum tempo ali parado. Sabe, eu comecei a imaginar a história daquela mulher, e o porquê dela ser a única ali, o porquê de seu corpo e roupas estarem ainda tão bem daquele jeito. Vi, entre seus dedos, uma fina corrente de metal, arrebentada. Abri minha mão e, olhando atentamente para meu tesouro, percebi um pequeno orifício que o atravessava. Era ela. Ela era a dona da pedra. Talvez aquele, ou aquela, que encontrei preso junto à janela, fosse um ladrão. Ou alguém a quem a mulher, em seus momentos finais, realmente tivesse dado um presente. Quem sabe?

O importante é que, por dentro, senti que a pedra havia sido muito importante para ela. Talvez, como a da minha avó, carregasse a lembrança de alguém muito querido, que a tivesse marcado por toda a vida. Tive pena.  Das duas.

Na verdade, não sei o que pensava naquele momento. Mas, simplesmente, curvei-me, respeitosamente, diante da mulher e segurei seu pulso magro e frágil, que estava apoiado sobre as coxas. Era como se eu a estivesse convidando para dançar. Bem, pelo menos era assim que se fazia, segundo minha avó.

Mas é claro que ela não levantaria e dançaria comigo. Eu só estava muito assustado, confuso e sozinho. Queria ajudar e queria ajuda, mas não podia. Nunca podia.

Senti-me totalmente ridículo ali, com o corpo curvado, segurando o pulso fino e um pouco viscoso daquela mulher imóvel, que me olhava sem parar com olhos brancos e vazios. “O que você quer?”, perguntei, em voz alta, olhando-a com firmeza.

O que eu esperava? Que ela respondesse? Que sua boca se abrisse, que seu peito respirasse? Que ela soubesse a cura para minha avó, para o mundo, para mim?

Sorri para ela. Sorri e, enquanto largava seu pulso, pus a pedra brilhante em sua mão. Era dela, afinal de contas.

Só então ela respondeu. E sua resposta veio de uma forma tão estranha que paralisou meu corpo completamente. Porque, tão logo me afastei, ela sumiu. Não, não virou pó, nem desmontou, como o cadáver que eu havia encontrado antes. Simplesmente sumiu. Eu não sei explicar direito. Ela foi ficando mais embaçada, suas formas tornando-se mais confusas, misturando-se com as cores de todo o resto. Sumiu.

Mas, mesmo antes do fim da  transformação da mulher em nada, pude ver algo no chão, uma coisa deitada, naquele mesmo lugar, como ela estava. Naquele momento, eu ainda não sabia o que aquilo era. Um tubo bem fino, verde escuro, da cor do insumo para recarregar bateria. Uma das pontas se abria, vermelha e vistosa, macia como a pele. Seu cheiro era indescritível, mas ainda posso senti-lo, impregnando minhas mãos.

Olhei para cima. Amanhecia lá fora. Precisava voltar. Precisava levá-la comigo.

Àquela altura, as partes do cadáver que encontrei em frente à janela já haviam nadado para longe do fundo da caverna. Ali, a água era limpa de novo. Enchi uma garrafa que encontrei no salão e segui, para baixo do sol avermelhado que já começava a cegar os poucos despertos espalhados pelo mundo.

Minha avó estava mais calma. Dormia, encolhida, protegida pela curva do nosso largo cano de metal. Molhei seus lábios com a água pura e transparente. Ela acordou devagar, estranhando a falta de sabor.

Ainda sem lhe dizer nada, estendi a mão e mostrei meu presente. E vi seus olhos se encherem de vida pela última vez. Pela última vez ela falou comigo, e acarinhou meus cabelos e me explicou as coisas da vida.

Foi ela quem me disse, entre lágrimas, o que era aquilo que encontrei. Não era um objeto. Chamava-se flor. Estava viva, mas por pouco tempo. Não havia nada sobre elas nos livros que tínhamos. Quer dizer, havia um poema, onde a palavra “flor” aparecia. “Campos afortunados, as flores do bosque.” E daí? O que é um bosque? Como outras palavras vazias, “flor” representava mais uma das muitas coisas esquecidas que ficaram apenas na memória dos mais velhos.

Mas, não para mim. Minha avó disse que o mundo, um dia, foi cheio dessas flores. E que, apesar disso, elas nunca deixaram de ser especiais. Que elas nasciam sozinhas, da terra. Que era preciso tocá-las com cuidado, pois elas morriam, como nós. Talvez fossem tão mais especiais do que os objetos pelo simples fato de que morriam, como todas as pessoas.

De repente, ela desistiu de falar. Abanou a cabeça e disse que eu, nascido em um mundo tão duro, nunca entenderia nada daquilo. Tanta beleza, tanta vida, tão pouco tempo... Pediu desculpas, duas vezes, e voltou a dormir. E só dormiu. Até o fim.

Pois, é. Tanta vida, tanta beleza, tão pouco tempo. Em pouco tempo, vi as duas morrerem.   

Você também já partiu, não é? Sim, eu sabia que aconteceria. Só não disse nada porque... Bem, porque diria, afinal? Quanto mais envelheço, melhor percebo a diferença entre as coisas que importam e todo o resto. Obrigado pela companhia. Dormirei sozinho outra vez, esta noite.

E se, de alguma forma, você encontrá-la em seu novo caminho, diga-lhe que conversou comigo. E que, sim, eu entendo.

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