segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Versos 'n' Roll




Nas plantações de algodão
Prever, não poderia
O negro, com seu violão,
A  força da música que criaria

Os "Fab Four", com muito talento,
Boy band escaparam de ser
Mas, quando eram o som do momento,
Das tietes, viviam a correr

Led Zeppelin e Yes na cabeça,
Floyd, Rush e o “Púrpura Profundo”
Dessa época, que ninguém esqueça
Quem eram o melhores do mundo

Black Sabbath surgiu do cortiço
Pra, dos hippies, tirar o sossego
Tinham cruz invertida e feitiço
E até o Ozzy mordendo morcego

Coladão com o sistema,
Nos oitenta o rock mandava
Quem não entrasse no esquema,
A Donzela de Ferro pegava

Metallica, após o “Black”, subiu
Seu metal foi pra outra direção  
Mas o mestre Cliff não viu
Suas músicas com orquestração

Com o Guns ainda letal,  
O motim já havia começado
Van Halen não mais era o tal
Viva o grunge "desafinado"

E, em breve, perderemos de vista
O velho rock de verdade
Os heróis dos festivais e revistas
Já tem seis décadas de idade

Tudo é rock, do punk ao metal,
Só não chamem de rock a Ivete
Dizem até que só tem moral
Roqueiro que morre aos vinte e sete.

sábado, 17 de setembro de 2011

Microconto #1: Espera

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Conto: Impossível


Nada é impossível nesse mundo, meu amigo. Não para mim. E se você estiver disposto a me ajudar, verá com seus próprios olhos. 

Sim, eu estava realmente indo para Outrora, a Cidade Dourada. Roubar? Mas é claro que não! Já lhe disse, e muito me entristeço por você não acreditar. Estava em uma importante missão real. É que o Rei confia muito em mim. O motivo? Olha, não sou de ficar falando, mas... Digamos que meu nobre patriarca, eventualmente, precisa de minhas habilidades para lidar com certos assuntos sigilosos. Está bem, está bem. Ele possui negócios no submundo e eu os gerencio. Satisfeito? Como assim, truque? Por mais riquezas que pudesse conseguir no interior da cidade, não sou o tipo de ladrãozinho vulgar que arriscaria a vida tentando um truque tão estúpido desses. É claro que se eu não tivesse motivos realmente sérios, jamais tentaria sequer contornar aquelas muralhas de perto. Mas eu lhe disse. Olhe só para mim. Um homem como eu, em missão real. Parece impossível, mas, comigo, acontece o tempo todo. Bem, minha atual situação permite uma confissão: Minha missão seria muito melhor recompensada se, de repente, algo de valor voltasse comigo, bem escondido, em minha bolsa... 

Como lhe disse, ainda era madrugada quando deixei Vraslien. E, no meio da manhã, já no fim da Estrada Plana, o tempo não me agradava nem um pouco. Talvez aquela mancha amarelada flutuando no horizonte tivesse influenciado o meu humor. A última coisa que queria àquela altura era estar no caminho de uma nuvem de âmbar, principalmente porque, a partir dali, teria que abandonar minha montaria. 

Venci o primeiro dos montes rochosos que pontuavam o restante do caminho e, lá de cima, enquanto batia as mãos sujas em minhas vestes, percebi que Outrora já era visível. Meu peito congelou. Poderia não ser tão fácil quanto eu quisesse. Certamente haveria perguntas e desconfiança. Você está certo. Não existe mesmo nada em mim que me torne digno de vislumbrar o interior da nobre Outrora. Como, então, eu pretendia assegurar minha entrada? Naquele instante, enquanto eu levava uma das mãos ao peito, refazia a mim mesmo essa pergunta. O toque frio e liso da pérola azul que pendia de meu pescoço tranquilizou-me novamente. Acredite se quiser, meu amigo. Eu viajava até Outrora carregando, orgulhosamente, a Máxima Credencial, um lendário Cordão da Lealdade. Tudo o que eu tinha que fazer era exibi-lo ao chefe da guarda e ele, boquiaberto, sairia do meu caminho, diante de prova tão inegável de retidão de caráter e fidelidade ao trono.

Até aquele momento, eu avançara devagar, pois ainda era cedo. Desci outro monte, atravessei o pequeno vale sombrio que me separava do seguinte e recomecei a escalar. Na próxima vez em que mirei o horizonte, vi que a nuvem de âmbar já se estendia, ameaçadora, por cima das montanhas mais próximas. Era uma das grandes. O que está dizendo? É claro que existem nuvens de âmbar nessa época do ano. Vejo que vai muito pouco àquelas terras, meu amigo. De qualquer forma, não foi a primeira vez nem será a última que terei de lidar com uma delas. Percebi que não teria muito tempo até que ela me alcançasse. Por isso, comecei logo a me preparar. 

Deixei aquela rocha alta para trás e, por sorte, me vi em uma depressão ainda mais profunda e sombria do que a anterior. Tirei minha espada, que, como quase todas as armas de Vraslien, é feita de prata pura e, com esforço, finquei-a fortemente no chão duro. Ora, você não sabe? Prata é o único material existente que ajuda a amenizar os males causados pela nuvem de âmbar. Você não conhece mesmo muito da vida, não é mesmo? Não me admira ter vindo parar aqui... Como dizia, após posicionar minha espada, sentei-me junto a ela, sobre minha bolsa, abrigado pela sólida silhueta da rocha de cujo topo viera. Agora era só esperar um pouco. Só isso. Com sorte, a nuvem seguiria seu caminho sem me causar maiores danos. Mas então eu a ouvi. Aquela voz delicada e cristalina chegou até mim, ainda que a nuvem já estivesse perto, rosnando incessantemente como uma fera. Não sou nenhum herói, mas, não com certa relutância, resolvi deixar a segurança de meu abrigo. 

Encontrei-a em uma cratera rasa, poucos metros à frente, com pavor estampado em seu rosto branco. Estava deitada, segurando um dos pés, que deveria estar torcido ou quebrado. Àquela altura, o vento parecia querer nos levantar do chão. Já não havia tempo para pensar nem fazer nada, exceto carregá-la até a segurança de minha espada, cujo brilho frio era um farol a se destacar contra a paisagem desfocada e escurecida. 

Chegamos a tempo. Recostei-a onde eu estava e, de olhos fechados, envolvi-a em meus braços, segurando firme o punho da espada. Ela encolheu o corpo como um pequeno animal e aninhou a cabeça em meu peito. 

Sentindo seu calor, pouco me ative ao que ocorria ao meu redor. E eu lhe digo: tivemos sorte. A julgar pelo seu tamanho, a nuvem até que passou rápido, deixando apenas alguns arranhões para trás. Quando abri os olhos, encontrei os dela, brilhando tão intensamente quanto o núcleo da massa etérea que seguia seu caminho às nossas costas. Rapidamente, tudo se acalmou novamente. Era hora de ir. 

Juntei minhas coisas e a amparei, fazendo-a andar ao meu lado. Perguntei-lhe se ela estava bem. Depois, seu nome. Por último, o que fazia ali. Silêncio foi tudo o que obtive. Desisti. Passei o restante do caminho pensando em como agir para que ela entrasse comigo em Outrora. Desisti disso também. Pensei que bastariam meus talentos para o improviso, quando a hora chegasse. Certamente, alguma coisa aconteceria, e, dali, tiraria minha inspiração. De fato, algo aconteceu. Algo que eu nunca seria capaz de prever. 

A poucos metros do portão principal, ela, que precisou do apoio de meu corpo cansado para dar cada passo, disparou com leveza e desenvoltura em minha frente. Gritava, um desespero evidente na voz, enquanto seguia direto para onde estavam as sentinelas. Segundos depois, toda a guarda da muralha externa já se mobilizara e estava pronta para pôr um fim rápido a qualquer incidente. 

Minhas pernas pararam. Ainda não havia compreendido a situação, tampouco sabia o que fazer. Seria ela uma louca, ou suicida? Reuni forças e coragem para correr e alcançá-la, mas quando ela deslizou pelo chão arenoso e parou, se ajoelhando a poucos centímetros dos dois imensos guardas do portão principal, desviei o rosto, antevendo sua morte rápida, provavelmente por decapitação. Ao chegar tão perto assim das muralhas douradas, sem permissão alguma, ela selara seu fim. Mas nada parecido com isso aconteceu. Ao contrário. De onde estava, assisti, atônito, enquanto os guardas ergueram-na gentilmente do chão e a conduziram para dentro. Pouco antes de desaparecer, ganhando o cobiçado interior da cidade Dourada, cenário dos sonhos de todos os ladrões, ela apontou para mim. Tal gesto impeliu os guardas a correr, como um adestrador faria com cães. 

Tentei manter a calma. No fim de tudo, as coisas poderiam até se ajeitar. Levei a mão ao pescoço, buscando o colar dado a mim pelo Rei. No segundo em que meus dedos encontraram apenas minha pele arranhada e encharcada de suor, entendi como ela conseguiu sua entrada na Cidade Dourada. Aos olhos dos guardas, eu, um homem honrado, em missão real, não passava de um simples bandoleiro, perseguindo uma donzela solitária e indefesa. 

Agora, tudo o que eu quero é sair dessa prisão, encontrar uma maneira de entrar em Outrora e, por fim, me vingar daquela ladra miserável que fez com que eu viesse parar neste buraco. O quê? Está me dizendo que é impossível sair daqui? Não para mim, meu amigo. Não para mim.  

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Três escritores - Sobre ficção e planejamento

Não existe arte sem liberdade. Não existe arte sem descobertas. O artista de verdade descobre a si mesmo, enquanto prepara para seu público algo único, que será para sempre uma mistura de espelho e janela. Por mais bem planejada que seja, a obra de arte só é o que é após moldar totalmente seu rosto, atravessando o tempo e o espaço na companhia de seu criador. E isso é ainda mais verdadeiro se pensarmos na longa jornada que o escritor e suas palavras devem encarar, até chegarem juntos ao ponto final.
 
Seguem, então, três interessantes relatos de como o acaso e o desconhecido podem e devem interferir em qualquer criação literária:

 
“Realmente não tenho toda a história quando começo. E, francamente, o que me dá o ímpeto de ir adiante é, em termos, a sensação de que estou descobrindo algo desconhecido para mim, explorando um novo grupo de ideias. O que torna essa descoberta possível é, quase conscientemente, jogar fora os livros que eu escrevi antes de começar” (Jennifer Egan)
 
 
“Desconheço o tipo de raciocínio que eu tenho, mas digo a meus alunos que se você está dirigindo (e eu não dirijo) na via rápida de Washington a Baltimore, e seu objetivo é chegar a Baltimore, e você inicia a jornada ao meio dia, talvez você se depare ao longo do caminho com placas indicando cidades das quais você nunca ouviu falar antes. E esse é o desvio que se perpetua na escrita. O último capítulo nunca mudará substancialmente, mas existem bifurcações antes de se chegar até aquele último capítulo que são surpresas.” (Edward P. Jones)


 “A vida não precisa se justificar. Ela acontece; temos que aceitar. Lendo ficção, o crítico cético gosta de se sentir no controle. No entanto, sua própria existência – toda existência – é sujeita a elementos acidentais, à intervenção inexplicável ou mágica, ou amedrontadora, que não pode ser justificada pela lógica.” (Shirley Hazzard)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Conto: Presente - Parte 3


Clique aqui para ler a parte 1, e aqui para ler a parte 2.

Passei algum tempo ali parado. Sabe, eu comecei a imaginar a história daquela mulher, e o porquê dela ser a única ali, o porquê de seu corpo e roupas estarem ainda tão bem daquele jeito. Vi, entre seus dedos, uma fina corrente de metal, arrebentada. Abri minha mão e, olhando atentamente para meu tesouro, percebi um pequeno orifício que o atravessava. Era ela. Ela era a dona da pedra. Talvez aquele, ou aquela, que encontrei preso junto à janela, fosse um ladrão. Ou alguém a quem a mulher, em seus momentos finais, realmente tivesse dado um presente. Quem sabe?

O importante é que, por dentro, senti que a pedra havia sido muito importante para ela. Talvez, como a da minha avó, carregasse a lembrança de alguém muito querido, que a tivesse marcado por toda a vida. Tive pena.  Das duas.

Na verdade, não sei o que pensava naquele momento. Mas, simplesmente, curvei-me, respeitosamente, diante da mulher e segurei seu pulso magro e frágil, que estava apoiado sobre as coxas. Era como se eu a estivesse convidando para dançar. Bem, pelo menos era assim que se fazia, segundo minha avó.

Mas é claro que ela não levantaria e dançaria comigo. Eu só estava muito assustado, confuso e sozinho. Queria ajudar e queria ajuda, mas não podia. Nunca podia.

Senti-me totalmente ridículo ali, com o corpo curvado, segurando o pulso fino e um pouco viscoso daquela mulher imóvel, que me olhava sem parar com olhos brancos e vazios. “O que você quer?”, perguntei, em voz alta, olhando-a com firmeza.

O que eu esperava? Que ela respondesse? Que sua boca se abrisse, que seu peito respirasse? Que ela soubesse a cura para minha avó, para o mundo, para mim?

Sorri para ela. Sorri e, enquanto largava seu pulso, pus a pedra brilhante em sua mão. Era dela, afinal de contas.

Só então ela respondeu. E sua resposta veio de uma forma tão estranha que paralisou meu corpo completamente. Porque, tão logo me afastei, ela sumiu. Não, não virou pó, nem desmontou, como o cadáver que eu havia encontrado antes. Simplesmente sumiu. Eu não sei explicar direito. Ela foi ficando mais embaçada, suas formas tornando-se mais confusas, misturando-se com as cores de todo o resto. Sumiu.

Mas, mesmo antes do fim da  transformação da mulher em nada, pude ver algo no chão, uma coisa deitada, naquele mesmo lugar, como ela estava. Naquele momento, eu ainda não sabia o que aquilo era. Um tubo bem fino, verde escuro, da cor do insumo para recarregar bateria. Uma das pontas se abria, vermelha e vistosa, macia como a pele. Seu cheiro era indescritível, mas ainda posso senti-lo, impregnando minhas mãos.

Olhei para cima. Amanhecia lá fora. Precisava voltar. Precisava levá-la comigo.

Àquela altura, as partes do cadáver que encontrei em frente à janela já haviam nadado para longe do fundo da caverna. Ali, a água era limpa de novo. Enchi uma garrafa que encontrei no salão e segui, para baixo do sol avermelhado que já começava a cegar os poucos despertos espalhados pelo mundo.

Minha avó estava mais calma. Dormia, encolhida, protegida pela curva do nosso largo cano de metal. Molhei seus lábios com a água pura e transparente. Ela acordou devagar, estranhando a falta de sabor.

Ainda sem lhe dizer nada, estendi a mão e mostrei meu presente. E vi seus olhos se encherem de vida pela última vez. Pela última vez ela falou comigo, e acarinhou meus cabelos e me explicou as coisas da vida.

Foi ela quem me disse, entre lágrimas, o que era aquilo que encontrei. Não era um objeto. Chamava-se flor. Estava viva, mas por pouco tempo. Não havia nada sobre elas nos livros que tínhamos. Quer dizer, havia um poema, onde a palavra “flor” aparecia. “Campos afortunados, as flores do bosque.” E daí? O que é um bosque? Como outras palavras vazias, “flor” representava mais uma das muitas coisas esquecidas que ficaram apenas na memória dos mais velhos.

Mas, não para mim. Minha avó disse que o mundo, um dia, foi cheio dessas flores. E que, apesar disso, elas nunca deixaram de ser especiais. Que elas nasciam sozinhas, da terra. Que era preciso tocá-las com cuidado, pois elas morriam, como nós. Talvez fossem tão mais especiais do que os objetos pelo simples fato de que morriam, como todas as pessoas.

De repente, ela desistiu de falar. Abanou a cabeça e disse que eu, nascido em um mundo tão duro, nunca entenderia nada daquilo. Tanta beleza, tanta vida, tão pouco tempo... Pediu desculpas, duas vezes, e voltou a dormir. E só dormiu. Até o fim.

Pois, é. Tanta vida, tanta beleza, tão pouco tempo. Em pouco tempo, vi as duas morrerem.   

Você também já partiu, não é? Sim, eu sabia que aconteceria. Só não disse nada porque... Bem, porque diria, afinal? Quanto mais envelheço, melhor percebo a diferença entre as coisas que importam e todo o resto. Obrigado pela companhia. Dormirei sozinho outra vez, esta noite.

E se, de alguma forma, você encontrá-la em seu novo caminho, diga-lhe que conversou comigo. E que, sim, eu entendo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Músicas para escrever


Quem gosta de escrever eventualmente se vê interessado pela maneira como trabalham os escritores já consagrados. Da formação acadêmica às técnicas empregadas, passando pelo material e ambiente de trabalho, informações sobre como nascem – e continuam a nascer – as grandes obras literárias podem ser bastante significativas para quem sonha em escrever uma, algum dia. 

Todo o universo pode e vai inspirar um escritor: experiências vividas, imagens e sons, relacionamentos e, também, outras artes. É um sistema de troca complexo que acontece também com pintores ou os próprios músicos, mas esse assunto pode ser abordado em outra ocasião. Sendo assim, não é difícil encontrar declarações de escritores renomados que preferem, lançam mão de vez em quando ou até mesmo não dispensam uma atmosfera musical em seu ambiente de trabalho.

Há aqueles que selecionam um gênero musical específico, cujo clima combine bem com o trabalho a ser desenvolvido – gothic metal, rock and roll bem básico ou uma sequência de baladas. Outros preferem que as músicas reflitam seu próprio estado de espírito, sem que necessariamente tenham a ver com as palavras que surgem na tela ou no papel. Há os que não gostam de músicas com letras, ou elas devem ser em outro idioma, diferente do que está sendo usado no texto. Nesse caso, entram peças do período clássico, romântico, barroco, jazz, tribais... Os que escolhem músicas de acordo com o contexto social ou a época sobre a qual está criando, ou cuja forma coincida com a estrutura  da obra escrita – sonatas, minuetos...

Muitos recorrem às trilhas sonoras. Eis um departamento virtualmente infinito. Tem os que defendam a descoberta de um álbum que complementou aquele filme obscuro da década de 70, tanto quanto os que acham efetivo invocar um clássico nerd, como Senhor dos Anéis, Conan, Star Wars. Tem quem diga que vale até um Dark Knight, sem esquecer da recente obra-prima do Daft Punk, feita para o segundo Tron, se o negócio pender para um lado mais high tech. Para inspirar e surpreender, é só dar uma “escutada” nos filmes do Tarantino, ou no que rola na paisagem sonora das obras de Tim Burton. Ainda falando de trilhas, em se tratando de games, a lista pode ser igualmente rica e extensa: Bioshock, God of War, Fallout, o bom e nunca velho Doom.

Porém, um grande número de escritores e aprendizes pensa que uma música que foi concebida tendo outro conceito em mente, ou já é parte de alguma outra obra, pode influenciar seu próprio texto em demasia, comprometendo a originalidade. Como não pensar nas desventuras de Mulder e Scully ao ouvir a menor sugestão do tema de Arquivo X?

Até para esses casos existe solução. Neste site aqui você encontra um acervo de mais de 7.000 músicas compostas, em sua maioria, por artistas independentes. São peças de boa qualidade  que acompanham muito bem qualquer viagem literária. O mais interessante é que não só é possível selecionar as músicas por estilo, como também pelo sentimento (feel) que elas transmitem. Por exemplo, escolhendo o “feel”  Chill/Laid Back, você se depara com um painel contendo faixas instrumentais, em sua maioria inéditas, de caráter suave e calmo. O mesmo processo pode gerar uma lista “adventure”, “agressive”,  “cinematic”... É só montar sua playlist e escrever uma nova história com trilha sonora exclusiva.

Agora, se para criar você prefere mesmo o sagrado silêncio, e não mora no campo ou em uma praia deserta, resta seguir os passos de inúmeros outros escritores e encontrar abrigo na sempre inspiradora madrugada ...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Conto: Presente - Parte 2

Para ler a parte 1, clique aqui.

A fraca luz da lua brilhou com respeito naquela superfície. Era uma pedra, tão lisa, redonda e translúcida que parecia ser feita de vidro. Naquele momento, pensava nunca ter visto nada parecido. Segundos depois, junto com uma revoada de insetos que zuniu por um tempo em torno de minhas orelhas, lembrei-me de algo palidamente semelhante que minha avó, um dia, havia me mostrado. O brilho era o mesmo, mas a que ela possuía era quase nada, uma migalha, perto do peso e esplendor que eu guardava na mão fechada. Outro pensamento, ainda mais caloroso, surgiu. Ela dizia que aquele tipo de pedra possuía muito valor no mundo antigo.  

Minha avó possuía um anel. Nunca esqueci a forma como ela o guardava, a reverência de suas mãos ao pegá-lo. Parecia haver tanta coisa nele. Ela não me disse nada, mas, de alguma forma, sei que a maneira com que ela o olhava era a forma com que ela já havia olhado para alguém, que já não existia. Bem, a escassez acabou levando aquele anel, como a quase tudo o que possuíamos. E, naquela hora, com os tornozelos dormentes por causa da água gelada, pensei que não poderia haver nada melhor para trazer minha avó de volta. Ainda que ela nunca mais parasse de sonhar, ao menos que sonhasse aqui, no mundo real, junto comigo.

É claro que aquela pedra não pertencia ao córrego. E eu logo entendi como ela havia chegado até ali. Talvez, um pouco mais adiante, encontrasse outra! Quem sabe, além de presentear minha avó, não conseguisse alguma comida com o homem da carroça...

Foi assim que decidi, sem pensar muito, andar contra a leve corrente, para além do ponto onde jamais havia estado. Uma larga fenda no teto permitia a entrada da luz da lua e clareava bem o caminho. Quanto mais eu seguia, mais a água ia ficando fria e volumosa. Ao mesmo tempo, o caminho ia afinando, afinando, os pedaços de pedra pareciam querer se fechar sobre mim a qualquer momento.

A parede final da gruta estava bem próxima. Já sentia o toque gelado da água em minha cintura, quando tropecei em algo no fundo e mergulhei de barriga, apertando a pedra entre os dedos com tanta força que até me esqueci de proteger o rosto.

Algo duro e pontiagudo recebeu minha queda. Tentei levantar, mas acabei tornando a cair, agora de costas, chutando e espalhando a água, que parecia molhar pela primeira vez a parte alta das paredes rachadas. 

Agora totalmente encharcado e muito assustado, tentei reduzir a velocidade dos meus movimentos, enquanto tateava o chão invisível, procurando reconhecer o que havia me derrubado. Todo o meu braço tremeu, quando minha mão encaixou-se em outra. Em um cumprimento bizarro, levantei da água, pelos dedos crispados, um braço esquelético. Liberei a respiração, mais calmo. Não era nada vivo. Já vi e toquei em corpos o suficiente em minha vida para adquirir total indiferença quanto à maioria deles. Sentindo o peso que puxava o braço para baixo, esforcei-me para erguer o restante do cadáver. Ele era muito escuro e deformado. Não dava para saber sua idade, ou se era homem ou mulher. De qualquer maneira, não havia nada nele que pudesse me interessar.  Era a janela, com molduras douradas, às suas costas, que me prendia a atenção naquele instante. Afastando o corpo que, por conta de nosso encontro, desmontou-se em pedaços, abri-a. Muita água escorreu pela abertura retangular, até cair ruidosamente no piso de madeira que havia do outro lado. 

O lugar era imenso. O teto, alto e arredondado, mostrava figuras coloridas, quase todas incompletas, por causa das tintas descascadas e dos inúmeros buracos, por onde a lua ainda me seguia. Na parede, a água do córrego continuava caindo pela abertura da janela, como se eu a tivesse ajudado a, enfim, encontrar aquele lugar. Aquele salão foi a coisa mais bonita e destoante desse mundo que eu já vi. Quanto brilho. Quantos tecidos diferentes, e cores. Desejei muito poder vê-lo como um dia foi, sem toda aquela poeira e detritos.

Havia uma mesa, muito, muito grande e larga. Cadeiras espalhadas por todo canto. Em cima de uma parte ressaltada do chão, estava um objeto tão estranho que nunca consegui sequer imaginar seu propósito. Ah, talvez você saiba me dizer, se eu descrevê-lo. Escute bem. Parecia um arco de caça, que o velho Anderson tinha. Só que gigantesco. E com muito mais cordas esticadas em sua armação. Eu empurrei-o, levemente, e percebi o quanto era pesado. Certamente não servia para ser transportado, muito menos para ser usado na caça. Era todo da mesma cor amarela e brilhante que cobria a janela e algumas partes das paredes. Quando passei os dedos pelas cordas tensas, elas fizeram um som que eu nunca havia escutado antes. Era uma sensação... irritante. Para quê uma arma precisaria de tantas cordas, e, o pior, para que fazer tanto barulho? O que era aquilo? Você é mais velho, sabe me dizer? E então? Não? Ah, me esqueci. Você não se lembra de nada. Desculpe.

Bem, logo ao lado daquela coisa, como se tivesse apenas acabado de recostar contra a parede para descansar, eu a encontrei. Cabelos presos acima da cabeça, enfeitados com fitas azuis, a mesma cor do vestido longo. Os olhos abertos miravam o nada, completando uma expressão de total desolação. Não, ela não estava descansando. Estava morta. Presa naquele salão desde décadas que eu nunca conheci.

Continua...

segunda-feira, 28 de março de 2011

Arte com café

Todo trabalho artístico implica no uso de determinados materiais e, em conjunto, uma abordagem técnica. A maioria dos artistas costuma valorizar e ponderar bastante sobre essa questão, pois sabe que o material utilizado para a realização de sua obra influencia seriamente o resultado obtido.

Em arte, a palavra "técnica" tem significado abrangente. Podemos relacionar esse termo à invenção ou ao uso de instrumentos e materiais, como também podemos aludir à habilidade ou método empregado pelo artista durante o processo de materialização daquilo que nasce em sua mente.  

O artista pode e deve ter liberdade para escolher o caminho que melhor irá satisfazer suas necessidades de expressão. Existem - e ainda estão para serem descobertas - infinitas técnicas, tanto quanto existem possibilidades materiais.

Humberto Freitas é um artista que faz pleno uso dessa liberdade. Dono de um traço e técnica excelentes, consegue imprimir um efeito bastante particular às suas ilustrações, graças ao material que escolheu para trabalhar: o café.

Observe esse exemplo, um crossover descontraído entre os universos do Aquático (He-Man) e do Bob Esponja:




Sem deixar que o conteúdo de suas obras exista apenas em função de seu método singular, Humberto expõe em seu blog, o cafecatura, um repertório interessante e variado: caricaturas, personalidades da web,  personagens de ficção, paisagens... 

Então, nas palavras inscritas no próprio site do artista:, "se você é daqueles que gosta de arte, criatividade, humor e não dispensa um delicioso café, vai apreciar o cafecatura."

Para conferir mais trabalhos como esse, acesse: http://cafecatura.blogspot.com/

Agora falta pouco...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Conto: Presente - Parte 1



Ei! Está acordado? Ah, que bom. Já estava começando a ficar preocupado. Venha. Segure minha mão para levantar. Vamos, você tem que me ajudar um pouco com isso. Afinal, tenho apenas a metade de seu tamanho. Não consegue, não é? Certo. Encoste aí, na parede, por um tempo. Fique tranquilo que eu estou de olho em tudo. Estive por aqui, vigiando, durante toda a noite. Minha avó sempre disse que eu era muito bom nisso. Olhos atentos, ela dizia.

 Eu sou Martin. Como se chama? Não se lembra? Tudo bem. É comum, hoje em dia. Você sabe, essas doenças esquisitas. De repente, é como a chegada de uma onda invisível, mudando tudo. Numa hora aparece um monte de gente tossindo sangue. Noutra, as mãos e pés incham tanto que chegam a explodir. E, agora, tem essa coisa com a memória. Todos parecem estar esquecendo tudo. As coisas vão mudando, e as pessoas, sumindo do mundo. Pois, é. Uma dessas ondas levou embora a minha velha avó, e me deixou sozinho. Sabe, por muitas vezes queria não lembrar de nada, como você.

Você está com fome? Eu também. Quanto a isso, não posso fazer nada. Não como direito há muito tempo. Após discutir muito com minha avó, o homem da carroça parou de passar por perto da nossa casa. Logo depois, eu descobri o motivo. Não possuíamos mais nada que pudéssemos trocar por comida. Desesperada, minha avó chegou a oferecer e ele nossos livros. Nós tínhamos três. Mas ele não aceitou. Não sabia o que fazer com eles. Engraçado, não é? Ele era velho, e não sabia ler. Eu sei. Minha avó não sossegou até me ensinar. Mas quando eu não estava com paciência, ou quando a fome era muito forte, ela apenas me chamava e contava histórias do mundo de antigamente.

Como as coisas foram bonitas um dia, eu te digo. É pena que você já não se lembre de nada. Pela sua idade, deve ter conhecido ao menos um pouco do mundo de antigamente. Coisas que eu não consigo sequer entender. As festas, as danças... Como poderia ser isso? Ah, havia música, também. Isso eu não sei mesmo o que era. Acho que era um som, feito especialmente para as pessoas ficarem se mexendo. Elas achavam bom, de alguma forma. Minha avó, pelo menos, gostava bastante de dançar. Embora nunca tenha visto ninguém dançando de verdade, na minha cabeça parece ser uma coisa maravilhosa. Ela tentou cantar para mim, uma vez, para me mostrar como era a música. Ela tentou, e tossiu muito, por muito tempo. Disse que já estava velha, e sua voz não era mais a mesma. Depois, bebeu, de uma só vez, quase meia garrafa de Relâmpago Azul, e fechou os olhos, com uma expressão aliviada. Eu continuei sem entender. Acho que música devia ser como o Relâmpago Azul. Não serve para muita coisa, mas as pessoas gostam mesmo assim, porque sentem alívio, porque descansam da realidade. Sei lá. Acho que estou com sono.

Sabe, não quero dormir em casa hoje. Não quero voltar nunca mais. Porque não tem mais nada lá. Minha casa era ali, do outro lado do túnel. Lá era seguro, na maior parte do tempo. Você sabe, as construções demolidas, cercando tudo. Raramente tivemos problemas com gente de fora. Quando era mais novo, achava que tínhamos sorte. Hoje vejo que poucos lugares são piores do que aquele para viver. Atrás dos prédios, há uma pequena aldeia. Umas quatro famílias, se ainda estão todos vivos. Parei de ter medo de bandidos querendo tomar nossa casa quando entendi que nós é que nunca tivemos forças para brigar por um lugar na aldeia. Éramos só nós dois, espremidos entre o entulho, entre as coisas que ninguém mais queria. Tem um grande tubo de metal onde dá para dormir, e um córrego marrom que passa perto dele. A minha avó gostava muito de ficar sentada ali, observando aquele pouquinho de água escorregar sem parar até uma fenda na parede mofada, do outro lado. Na verdade, não havia muito mais que ela pudesse fazer, na maior parte do dia. Desde que eu me lembro, ela já não andava direito.

Mas, espere um pouco. Falando assim, pode dar até uma impressão errada sobre ela. Ela tinha uma língua que trabalhava sem parar, e mãos que abanavam para todo lado, acompanhando cada palavra sua. Ela não precisava de pernas saudáveis para preencher totalmente aquele lugar. Nunca ouvi um só lamento sobre sua vida ou sua sorte. Mesmo quando as coisas começaram a piorar.

Até hoje eu ainda não entendi o que houve com ela. Talvez não haja mesmo como entender. Mas ela começou a ficar mais e mais distante,  quieta. Não reconhecia mais as coisas, não ouvia o que eu falava. Era como se não ligasse mais para a realidade. Pior. Parecia não ligar mais para mim.

Na época, eu achava que era a fome. Odiei com todas as forças o homem da carroça e, até mesmo, as pessoas lá do vilarejo. Mas eu tinha mais raiva mesmo era de mim. Eu não sou mais uma criancinha, afinal. Precisava fazer alguma coisa. E como eu queria ajudar! Encontrar uma maneira de melhorar a nossa vida.

Essa maneira surgiu diante de mim por acaso, em uma madrugada, nas águas frias e pegajosas do nosso córrego. Minha avó estava com febre, suava e delirava. Tinha muita sede. Eu me lembro de mergulhar uma lata vazia nas águas do córrego, e erguê-la, enojado. Ou ele estava se deteriorando muito rápido ou eu nunca havia reparado no odor que exalava. Não serviria aquela água à minha avó, doente como estava. Quem sabe, mais adiante, o curso da água não estivesse mais limpo?

O córrego surgia de uma caverna, feita com os restos de dois edifícios, tombados um contra o outro. Lembro-me que nunca me senti tão sozinho quanto naquela madrugada em que mergulhei os pés na água fria e mais escura que o céu. Estava profundamente triste. E, já naquela noite, sabia perfeitamente que não queria mais ficar ali. Era apertado demais, sujo demais. Acho que já lhe disse tudo isso. Não disse? Esquece. Deixe-me continuar.

Quando achei que já havia entrado o suficiente na caverna, mergulhei minha latinha novamente. E, do fundo dela, veio um barulho totalmente inesperado. Na mesma hora, ergui as mãos e tombei a lata, com cuidado, vedando a abertura com os dedos, impedindo a saída do que quer que tivesse caído ali dentro. Segundos depois, algo mais frio do que a água, mais suave ao toque do que o tecido mais novo e mais limpo, procurava abrigo no centro de minha mão em forma de concha.
Continua...

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Guerra da Arte: Táticas para o autor-general - Parte I

Sun Tzu foi um comandante chinês que, ao longo da vida, acumulou inúmeras vitórias graças à sua astúcia aguçada, sua disciplina e ao seu descomunal poder de liderança. Apenas por essas vitórias, ele já teria passado para a História como um grande filósofo-estrategista. Mas ele fez mais do que isso. Escreveu “A Arte da Guerra”, uma coleção de pensamentos decorrentes de suas experiências em situação de combate.

Podemos facilmente compreender que qualquer guerra depende, inevitavelmente, de estratégias, planejamentos, cálculos de riscos, uso inteligente de recursos, confrontos diretos ou indiretos com forças contrárias... assim como quase tudo de importante que se pretenda realizar na vida. Por isso, os escritos de Sun Tzu, hoje em dia, possuem uma aplicabilidade tão ampla que chegam a ser utilizados como base para o desenvolvimento de programas de treinamento esportivo, análises de modelos empresariais e até mesmo reflexões sobre relacionamentos.

Como “estamos no campo da história como no campo da linguagem ou do ser” (Merleau-Ponty), e se o próprio general chinês considera a guerra uma “arte”, vejamos se é possível, então, uma inversão de seu conceito. Imaginemos um escritor como um general de seus próprios personagens, atuando no campo de batalha que é o terreno vasto e incerto de sua imaginação, sob alguns dos princípios de Sun Tzu:

- Leva seu próprio material de guerra, mas também procura suprimentos no inimigo. Desta forma, o exército come o suficiente para atender às suas necessidades.

As referências são as maiores aliadas da inspiração. Uma boa pesquisa, em material ficcional ou não, pode enriquecer surpreendentemente a primeira ideia. O escritor nunca deve ter escrúpulos em, consciente ou inconscientemente, “procurar suprimentos no inimigo”, obviamente, respeitando-se os limites do que se caracterizaria como plágio. Aqui, há todo um post aprofundando melhor esse conceito. 

- Quando as circunstâncias favorecerem, deve-se modificar as estratégias.


Planejamento é algo essencial à maioria dos escritores. Quase sempre, o ato de se desenvolver uma narrativa fica muito mais fácil quando já se sabe aonde se quer chegar, bem como as etapas a serem cumpridas até lá. Porém, quando se faz arte, é comum o surgimento de novas possibilidades, tão logo iniciamos a etapa de execução. Como a escrita é um processo longo e constante, o escritor sempre corre o risco de ver o mundo que está desenvolvendo ganhar vida própria. Às vezes, um personagem adquire autonomia, conforme sua personalidade transforma-se em palavras, tornando-se mais complexo e importante para a trama; às vezes, algo observado no dia a dia acaba fornecendo uma referência de última hora que exigirá certas alterações no texto já escrito. Cabe ao autor enxergar esses desvios como “circunstâncias favoráveis” ou não para, então, julgar se deve seguir através deles. 

- Toda guerra está baseada no engano.

Essa é, provavelmente, a afirmação mais conhecida de Sun Tzu, e a mais imprescindível delas.  Parafraseando-a, podemos dizer que toda obra narrativa consiste em estabelecer perguntas e, então, tentar respondê-las do modo mais criativo, surpreendente e interessante possível.

O “engano”, em uma história, pode ser entendido como o “conflito”. Aquele ou aquilo que acaba se opondo às vontades e objetivos do protagonista, que quase nunca sabe exatamente o que está acontecendo. Logo, parece sensato pensar que nenhuma trama realmente se move enquanto um “engano”, um “conflito” não é plenamente estabelecido. 

- Ou seja, quando possuímos condições para atacar, devemos parecer inativos; quando estamos perto, devemos dar a impressão de que estamos longe; quando longe, precisamos fingir que estamos próximos.

Ainda desenvolvendo o raciocínio, uma vez criado o conflito, o autor começa o exercício de “enganar” o leitor, da melhor maneira possível. Nada deveria ser entregue facilmente, arranjado em cima de clichês ou passagens inverossímeis de tal forma que destoe do universo onde se passa a trama. O segredo, aqui, está em deixar o leitor sempre um passo atrás, quebrando expectativas, fornecendo informações que só irão se tornar úteis mais adiante... É claro que se deve ter em mente que, às vezes, a concretização de algo já antecipado pelo leitor é algo desejável, mas o abuso de tal recurso em uma história corre o risco de gerar desinteresse. 

- Use a isca para atrair o inimigo. Finja desordem e esmague-o.


Aqui, estamos falando do Ponto de Crise. Nessa fase, situada, mais ou menos, a dois terços da narrativa, a solução dos problemas do protagonista parecem mais distantes do que nunca, tanto a ele quanto ao leitor. É onde o escritor “finge desordem”, antes de resolver a turbulência que criou. Sendo assim, deve-se esforçar ao máximo para que a transição do Ponto de Crise para o Clímax – o momento onde o protagonista enfrenta seu conflito de forma mais intensa e grandiosa – seja marcante ao ponto de originar um final memorável para a história.

- Quando começar a verdadeira luta, se a vitória demorar a chegar, os homens perderão o ânimo e ficarão sem paixão pela causa.


O escritor não deve ter pena das pessoas que cria. Quanto mais fracas elas se colocam perante uma situação, maior é a curva dramática e o suspense obtidos. Porém, o exagero costuma roubar a identificação do leitor com o personagem. Ele deve ganhar algo, de vez em quando. Principalmente, após passado um Ponto de Crise. Poucos autores possuem habilidade suficiente para dar vida a “perdedores totais” realmente carismáticos. 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Conto: Recusa

“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro” 
Friedrich Nietzsche


Quando a ilha despontou, embaçada e nebulosa, um ponto azulado boiando no imenso oceano, Ahura sentiu um frágil orgulho de si mesmo, sensação da qual ele já não se lembrava. Foi na prisão que ele ouvira falar daquele lugar. Aquela informação havia sido a única coisa benéfica que carregara dentro de si, após cruzar os odiosos portões que o trancafiaram sem piedade por tantos anos.

Ele queria muito recomeçar. Recuperar o tempo que perdera. Estava ávido por aventuras, faminto por conquistar algo que lhe desse algum poder, que lhe devolvesse um pouco de respeito. Talvez, assim, o destino lhe realizasse o sonho impossível de apagar toda a decepção que pusera no coração de seu velho mestre. Decepção que oprimia a ele próprio tanto quanto o mar à minúscula ilha na qual acabava de pôr os pés.

Ahura puxou o barco com dificuldade, fazendo-o arrastar o casco na areia quente até estar quase inteiramente fora d’água. Suas habilidades de navegação ainda estavam intactas. Mas, quando esticou o corpo, percebeu o quanto estava cansado. Aquela havia sido uma longa viagem. De fato, a distância que acumulara atrás de si era como um punho gigantesco pressionando seus ombros. Um tanto contrariado, acabou admitindo para si mesmo que não sentia apenas o cansaço de um viajante. A prisão lhe roubara tempo demais. Aquilo, aquele ardor na carne e frio nos ossos, eram o que sentiam os velhos. O guerreiro chegou mesmo a questionar, por um momento, se a viagem havia sido uma boa ideia. Seus passos eram lentos. Sua arma era mais um cajado do que a foice de guerra com que seu mestre havia lhe presenteado e ensinado a usar, em um dia muito distante no tempo. Mas, sacudindo a cabeça, concentrou-se apenas no desejo fervente que o guiara até ali. Olhou para sua bússola. Se seu colega de cela estivesse falando a verdade, em pouco tempo estaria pisando em um lugar de onde ninguém jamais havia voltado. 

Após a estreita faixa de areia branca que dava forma à praia, surgia uma grama rala e  ressecada pela ação incessante do sol. Tudo era completo silêncio. Nem mesmo o forte vento parecia mover as folhas amareladas das árvores de troncos grossos que começavam a se adensar e encobrir a visão. A ilha era pequena e distante, muito distante de qualquer outro lugar onde vivessem homens. Mas não era apenas o isolamento que mantinha o que viera buscar ainda intacto. Histórias sussurradas nos bares portuários descreviam um horrendo e invencível guardião.

Ahriman era o nome daquele guardião. E ele havia sido um príncipe de um reino próspero, um dia. Ou um poderoso feiticeiro, aprisionado na ilha por um rival. Ou um aventureiro de terras distantes, cuja embarcação naufragou perto dali. E agora ele era escamoso, ou alado, ou teve o rosto totalmente apagado pelos ventos salgados, restando apenas presas disformes em meio a uma mancha sombria. A verdade poderia estar escondida em alguma daquelas lendas, ou não ter nada a ver com nenhuma delas. Ahura sempre achou engraçado o fato de todos terem algo a acrescentar à história sem, no entanto, saber sequer em que direção navegar para chegar até ali.

Um uivo quase humano ressoou próximo ao seu ouvido. Dando um passo para trás, o guerreiro evitou, por puro ato reflexo, a primeira e feroz investida. De onde vieram aquelas garras, afinal? Ahura procurou acalmar a respiração. Sabia que não havia tempo para se perguntar coisa alguma. Tudo o que podia fazer era assumir sua posição defensiva e colocar em prática o que treinara por tantos anos. Enquanto sua mente lutava com as memórias escorregadias de golpes e posturas defensivas, o monstro apresentou-se por inteiro, saltando da copa de uma das árvores decrépitas.
Ahura lutava consigo mesmo para crer em seus olhos. Ali, parado à sua frente, o guardião erguia o corpo e virava lentamente seu rosto negro e deformado. Aquilo não era parecido com nada que ele tivesse conhecido. Era como um primata gigantesco, com garras felinas brilhando nas pontas dos dedos grossos. Naqueles olhos amarelos estava claro que ele sabia o que Ahura viera pegar. E, mais nítido do que isso, uma vontade selvagem, uma raiva instintiva que, em apenas um segundo, destroçou qualquer esperança de vitória que ainda habitava o peito de seu frágil oponente.  

O guerreiro apertou os olhos e esperou que, quando a fera saltasse em sua direção, tivesse forças para repeli-lo, ou, ao menos, sorte para desviar o corpo. Mas logo Ahura descobriu que o guardião não era nenhum animal. Porque não fez o que um animal faria. Juntando as mãos e abaixando a cabeça, mostrou que ali restara algo de um homem. Talvez naquela reverência estivesse guardada sua essência, a parte que sempre sobreviveria, a despeito do que sofresse.

Porém, quando o embate começou, aquilo se foi. Ahriman batia com a força de cinco soldados, arranhava como o fariam os dentes de um demônio. Cada vez que lançava suas garras, Ahura era empurrado para trás. Aos poucos, as investidas do guerreiro transformaram-se em uma fuga meio rastejada, em direção às entranhas da ilha.

Quando a arma caiu de suas mãos, Ahura começou a se preparar para o fim. Não era assim que deveria ser. Ele queria mais. Merecia mais. O suor ardia em seus olhos. Acima de si, o corpo negro do guardião era a escuridão inabalável de um céu tempestuoso.

Mas o sol brilhou por um momento, enquanto Ahriman levantou-se lançou os braços para trás da cabeça, preparando o último golpe. Ahura não via nada, não se lembrava de nada, não queria nada. Mas tinha certeza de que tudo o que fizera a partir daquele momento não passara por sua consciência. Não planejou o golpe que dera, com os dedos esticados, no ventre exposto do guardião. Não anteviu a violenta reação daquelas garras e, ainda assim, esquivou-se delas. Não pensou se suas pernas aguentariam afastar aquele corpo maciço, mas chutou-o com sucesso para longe. Sentiu que aquilo não era ele, mas seu mestre. Aquelas ações eram seus ensinamentos, enraizados tão fundo quanto a reverência que ainda dotava o guardião com uma gota de humanidade. Ahura agora sabia que não haveria tempo, doença, medo ou desesperança capaz de apagar aquilo que um dia aprendera.       

Ao tentar se por de pé, o guerreiro sentiu que se apoiava em algo de formas diferentes. Aquela pedra, alva e perfeitamente retangular não havia sido feita assim pela natureza. Nem a que se apoiava nela. Nem a seguinte.

Os olhos de Ahura ergueram-se para tentar assimilar o que era aquilo. E todo o seu corpo maravilhou-se com o impossível. Só poderia ser ali. No topo daquela escadaria estaria guardado seu merecido prêmio.

Seu sangue fervia enquanto lançava-se para cima, degrau após degrau. Não importava se o guardião o estivesse seguindo. Tudo o que ele queria era subir. Se fosse preciso lutar novamente, que fosse lá em cima.

Quase no topo da escada o guerreiro já não se continha de tanto interesse pelo que se esconderia poucos metros acima. No entanto, dali, ele podia ver melhor por entre as árvores. E seus olhos, subitamente, estavam presos na figura deformada que não subia em seu encalço, mas sim, caminhava para longe. Caminhava para o mar. Para seu barco. Só então ele entendeu tudo. Ahriman não lutara de verdade. Nem era, de fato, um guardião. Ele não passava de um prisioneiro, como o próprio guerreiro havia sido, até meses atrás. E, na ânsia de vencer o monstro e conquistar seu tesouro, Ahura estava a ponto de oferecer a si mesmo para substituí-lo naquele lugar.

Aquela descida era quase uma queda, dolorida e incontida. O desespero que tomou seu espírito de assalto o fazia ignorar a dor nos músculos e as escoriações. Naquele momento, só lhe importava chegar à praia, mais nada.

Ahriman rugia alto. Seus braços poderosos acabavam de colocar o barco de volta na água. Ele apoiou uma das mãos na borda e quase sorriu, sentindo a madeira balançar, acomodando-se naquele enorme leito azul.  E foi assim, quase sorrindo, que seu rosto tombou contra a areia úmida. Orelhas pontiagudas e presas retorcidas rolaram até o mar. Os olhos amarelos do guardião apagaram-se pouco antes de sua cabeça afundar de vez, retirando um breve suspiro da água inquieta. O corpo órfão fez barulho maior, esguichando espuma e sangue negro ao tombar, mutilado. Logo atrás, apoiado em sua foice de guerra, Ahura apenas olhava, sem saber muito bem o que sentir.

Ele havia vencido. Na ilha, era somente ele agora. Tudo estava em paz e silencioso, como quando ele chegara. O guerreiro agarrou o pequeno barco com ambas as mãos, pronto para arrastá-lo de volta para fora do mar. E então, olhou para trás. Pensou naquela escadaria de pedras brancas, invisível por conta da massa de folhas e galhos castigados. Ali, no topo daquela escadaria, estava o troféu que poderia mudar a sua vida.

 Gostaria muito de não ter que decidir. Gostaria que algum relâmpago sobrenatural tivesse derrubado a escada, que a ilha estivesse, de alguma forma, condenada a sucumbir a uma saraivada de flechas prateadas vindas dos céus e ele tivesse que partir imediatamente. Mas, não. Não havia mais perigo, nem urgência. De repente, o guerreiro pôs-se a pensar no que seu velho mestre faria.

Sob o calor cegante do sol, ele quase viu uma figura baixa e sinuosa fluir de entre as árvores até onde estava. Era ele. Só que há alguns anos, quando ainda o recebia em casa com um abraço preparado. O ancião ergueu as sobrancelhas e disse, com a firmeza costumeira, que Ahura nunca fora realmente capaz de saber o que se passava dentro dele próprio, em primeiro lugar.  Como poderia saber o que era preciso para se tornar um homem melhor do que era? 

Imagens seguiram surgindo, sobrepondo-se, vertiginosamente. Uma cascata que jorrava ouro líquido ou a poção da vida eterna; artefatos que concediam habilidades divinas ao seu portador; um livro contendo a derradeira verdade sobre o mundo. E o desfile continuaria, se o guerreiro não curvasse o corpo e lavasse aquele brilho com a fria água do mar. Poderia ser tudo aquilo, e muito mais, até. Certamente, ele próprio não resistiria e acabaria aumentando aquela lenda, acrescentando tais visões aos seus futuros relatos.

Mas agora ele não tinha mais dúvidas. Seu mestre simplesmente daria de ombros e não voltaria a subir um degrau sequer. Afinal, se o próprio guardião daquele troféu estava disposto a trocá-lo pela chance de deixar aquele lugar, o que quer que houvesse no topo daquela escada não valeria à pena. Qualquer que fosse o tesouro, não era nada, se Ahura o comparasse com o mais vago risco de perder novamente sua liberdade.

Ahura queria que seu mestre estivesse ali naquele momento. Porque o homem que se sentou naquele barco e empurrou-o para longe da ilha, sem ao menos olhar para trás, era o mais vitorioso dos guerreiros. Porque estava em paz. Porque agora reconhecia e sabia cuidar do que tinha de mais precioso.

Tirinha - Filosofia #3

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Conto: A Última Lenda



A qualquer momento, qualquer coisa poderia acontecer. Dentre tudo o que Esther havia aprendido na vida, essa era a maior da sua coleção de verdades. Era um pensamento que lhe assaltava com freqüência, como uma lembrança desbotada. Quem sabe, tais palavras não tivessem sido sussurradas, há muito, em seus ouvidos. Ela não saberia dizer. Porém, foram elas as primeiras a alcançarem a superfície de sua mente, após estranhos sons, pouco a pouco, tirarem-na de seu mundo de sonhos. Os conhecidos sons cadenciados de pés militares espancando o chão de terra.

Ainda colocando apressadamente um véu sobre a cabeça, escancarou as cortinas. Com quase a metade do corpo saindo da janela de seu quarto, Esther perguntou sobre a situação para um dos guardas que passava ali por baixo. Ele, ao ouvir sua voz, virou-se, escancarou imediatamente um largo e respeitoso sorriso e pôs-se a falar.

O rapaz contou que os inimigos do Leste estavam chegando. Muitos deles. Contou que, durante a madrugada, um mensageiro dos primitivos havia surgido, portando uma carta, repleta de exigências descabidas. Eles não queriam mais prestar seus serviços nem pagar seus tributos. E, pior falta de todas, registraram, em vermelho, palavras de negação e repúdio aos Costumes Eternos. Como o mensageiro deixou bem claro que uma negativa resultaria em ataque imediato, nada mais podia ser feito a não ser organizar as defesas da cidade. Seria um massacre hediondo e inútil, mas o general esperava exterminar o mínimo possível dos pobres selvagens, antes que eles sinalizassem com a rendição e retornassem para suas terras.  

Esther sorriu de volta para o rapaz, desejou-lhe boa sorte e disse-lhe que já podia ir. Com uma larga reverência, ele agradeceu e retomou seu caminho.

Não, Esther não possuía familiares importantes nem exercia qualquer relação com o poder. Sequer gostava de falar sobre política. Mas era tratada com muito mais deferência do que a rainha mais justa do reino mais próspero. 

Ela ficou ainda um pouco na janela, apenas observando, em silêncio. Não gostava nada de ver aquele cenário tomar forma, apesar de entender que não havia outro jeito. Todos sabiam que, cedo ou tarde, aconteceria. Mas, nos rostos dos lanceiros, que agora acabavam de marchar pela Estrada Grande, não havia o menor traço de temor, muito menos, motivos para isso. A cidade era forte, civilizada e bem protegida, tanto quanto os homens eram bem treinados. As coisas estavam completamente sob controle. Tudo o que ela deveria ou poderia fazer era esperar, assim como as demais mulheres. Mas ela não era como as outras mulheres.

Uns diziam que havia mais pessoas como ela no mundo, em tempos remotos. Um reino inteiro deles. Outros, que ela fugira de alguma terra mágica, um lugar habitado por lendas esquecidas. Assim a chamavam, às vezes. A última lenda a viver entre os homens. O fato de ela existir há tantos anos sem jamais envelhecer fisicamente, além da idade que aparentava, só alimentava tais pensamentos. Nunca fora hostilizada ou discriminada, como acontecia com aqueles que ostentavam traços estrangeiros ou os portadores de deformidades. Ao contrário, consideravam-na uma dádiva para a cidade. Era consenso que ela seria portadora de poderes mágicos adormecidos, ou mesmo, que os escondia, influenciando secretamente os acontecimentos. Toda sorte de superstições envolvendo seu olhar, suas lágrimas ou sua voz já havia sido recitada como verdade por jovens e anciãos. Por décadas, ela fora a inspiração para canções, pinturas e esculturas. Incontáveis homens receberam sol e chuva ali mesmo, onde há pouco estava o jovem guarda, à espera de um sorriso, um olhar que fosse. Mas Esther apenas assistia ao mundo, eternamente debruçada no alto de sua janela, obrigando-se a corresponder com rigor à imagem criada para ela.

Logo, pouco havia para ver lá fora. Os últimos soldados sumiram pelas aberturas da muralha interna, deixando para trás apenas os ecos abafados de seus passos. Voltando-se para o interior de seu quarto, ela sentia-se tudo, menos aquilo que pensavam dela. No fim, sozinha em um mundo onde ninguém a vira nascer, ela nunca poderia realmente negar coisa alguma.

Ela passou os dedos finos e delicados pelas cortinas leves, e continuou, contornando as paredes côncavas e nuas que formavam a grande oval que era seu quarto. Nada além de um espelho retangular pendia das paredes. Por algum motivo, ela nunca gostava das pinturas que via, por mais precisas e realistas que fossem. Embora sempre fosse presenteada com uma delas, jamais quisera nenhuma para si, muito menos ser, ela própria, eternizada em tintas. Preferia as coisas como eram: paredes nuas e uma incessante profusão de imagens jorrando diretamente de sua própria imaginação.

Alinhando o corpo com o espelho, ela olhou-se demoradamente. Os olhos, grandes e ofuscantes como duas gemas cor de mel, passeavam por seu rosto pálido. Os lábios, pequenos e vermelhos como um fruto, esticaram-se em um sorriso conformado. Talvez, um dia, ela, enfim, se acostumasse.

Suas delicadas orelhas pontiagudas giraram em direção à janela, sobressaindo-se ao véu azul escuro que ainda pendia de sua cabeça. O sino do Templo da Luz gemia um lamento grave e repetitivo. Agora, ela sabia que o ataque havia realmente começado.

Esther não precisava estar lá, diante das muralhas, para saber o que deveria estar acontecendo naquele momento. Sentando-se na beirada da cama, ela entregou-se àquele exercício, como forma de amenizar a solidão e a sensação de impotência que permeavam o ar.

Ela podia ver, diante de si, as fileiras de arqueiros e as pedras em chamas voando. Os cavalos trotando em longas fileiras, antes de caírem para trás, como um só, ante o impacto das flechas e lanças. Os gritos passionais dos primitivos, o frágil armamento de madeira e penas despedaçando-se contra o metal. E, por último, espadas largas e curtas decapitando os últimos atacantes, cujos olhos, mortalmente arrependidos por tamanha ousadia, sequer teriam tempo de se fechar, e assim permaneceriam, por alguns dias, ou enquanto durassem nas cabeças espetadas diante das muralhas.

Assim, o campo de batalha foi se desenhando cada vez mais nítido na mente de Esther, até descer dos céus em seu entorno, conforme seu corpo foi tombando lentamente sobre a cama macia, entregue ao sono. Sua consciência havia cedido lugar a um longo e vívido devaneio. Logo, unicórnios, espadachins alados e gigantes reluzentes tomaram para si a guerra dos homens, lançando feixes luminosos uns nos outros. Ela viu um forte guerreiro, cujo corpo era feito de bronze e a voz explodia, em fúria e revolta, afetando aliados e inimigos como o fio da espada mais poderosa. Ele vinha acorrentado pela cintura e pescoço, sob os músculos de dúzias de guerreiros. Marchava e lutava pela liberdade, que ansiava conseguir antes de ser lançado contra o inimigo. Mas parou, no momento em que ergueu os olhos flamejantes e, em lugar do céu, viu o rosto de Esther. E ela sentiu o que ele sentia.  Eram, os dois, prisioneiros e solitários. Ela, da veneração civilizada. Ele, da força bruta, da fúria cega de seus captores, que o arrastavam como uma arma de guerra, um aríete bestial e sem alma.  Eram, os dois, estranhos no mundo. E estavam em busca de um caminho de volta, até então, impossível de ser encontrado.

Anoitecia quando o sino tocou novamente. Pulando da cama, Esther correu até a janela, varrendo seus sonhos sem sentido para longe e já pronta para acenar e congratular os heróis vencedores.

Mas os passos que estrondavam em sons desgovernados não eram de vencedores. Soldados e lanceiros fugiam, entre metal partido e gritos de desespero. Esther não podia ver a ferida mortal aberta na majestosa muralha externa, pela qual jorravam sobreviventes dos dois lados, mas a adivinhou, tão logo o primeiro selvagem surgiu, socando o peito e erguendo a clava. Um invasor, exibindo as presas, triunfante, sobre o chão de sua cidade. Seu lar. 

Em pouco tempo, ela não via mais defensores. Apenas as cores fortes, as barbas negras e os cabelos emaranhados dos inimigos.  

Tudo parecia cinza para Esther. As coisas, cujos significados já eram tão frágeis em sua mente banhada pelas marés de quase um século, perderam totalmente a importância. O mundo lhe parecia pequeno, fútil e distante. 

O sino tocou novamente. Mas, agora, ele gritava, fendido e estridente, castigado pelas mãos insolentes do inimigo, homens que sequer assimilariam sua real utilidade. Como formigas, os selvagens venciam portas, portões e escadarias, violando e depredando os edifícios que encontravam em seu caminho.  Ao longe, gritos femininos e infantis confirmavam a Esther o desfecho do ataque e o cenário de pesadelo no qual agora vivia. Qualquer coisa, a qualquer momento, poderia acontecer. Essa, de fato, era a maior verdade de todas.

Ele escancarou a porta. Estava sujo e transpirava como um cavalo. O olhar era luminoso e ameaçador, como o de um cão guardião. Ele escancarou a porta e um trovão entrou com ele. Mancando, empurrou a si mesmo até o centro do cômodo. Mesmo com o discernimento afetado, ele sabia que era ali. E foi ali que ele, enfim, parou de fingir e admitiu que estava morrendo.

Encontrara o quarto completamente vazio. Arfando pesadamente, ele girou a cabeça, contemplando as paredes nuas e arredondadas. Nuas, exceto por uma pintura de moldura retangular, na qual pairava um meio sorriso vermelho como o sangue que manchava o chão. Um sorriso que ele, de algum modo, reconheceu.

Ele viu-se prisioneiro do fascínio que aquela imagem exercia. Ela usava um véu azul escuro, que envolvia seu rosto com perfeição e contornava suas orelhas, inumanas, porém belas, ao seu modo. Aquele rosto pálido parecia real, como se lhe acenasse de uma janela. Ele quis se aproximar, tocá-lo. De repente, todo o horror que acabara de viver o agredia mais do que seu ferimento fatal, tão descabido e estúpido lhe parecia agora.

Cada passo roubava o pouco de vida que lhe restara no corpo, cada respiração deixava seus pulmões mais ocos. Mas ele continuou. Venceu os metros que o separavam da pintura e estendeu um dos braços. Sabia que era loucura, mas não era somente o medo da solidão no momento final. Ele queria mesmo era sentir a maciez daquela pele, ouvir o som daquela voz. E quis tanto que seus dedos formigaram com um calor repentino e curativo. Abrindo bem os olhos, ele viu um rastro negro engolfá-lo, como se a própria noite, em seu rodamoinho de sonhos e pensamentos, abandonasse toda a decadência exterior para gerar uma ponte indefinida entre dois mundos. A mulher da pintura retangular ganhou vida, o brilho que a rodeava fustigava a pele como mil agulhas. Incapaz de resistir por mais tempo, ele tombou, ainda estendendo-lhe uma mão suplicante.

Segundos depois, o guerreiro via-se erguendo o corpo, apoiando-se em um dos joelhos. Às suas costas, o quadro de moldura retangular retratava uma parte do quarto onde estivera. À sua frente, a mulher, agora tão real quanto ele próprio, permanecia de pé, sorrindo, cercada por todo um mundo que ele sequer seria capaz de imaginar.

Não havia mais sombras. O ar era puro e luminoso. Ainda que vistas à distância, pousadas em um chão que ondulava como o mar, as construções eram gigantescas. E azuis, brancas e etéreas, como as águas decididas de uma cascata. E, misturados com tudo o que viam, ele era o bronze mais polido, e ela, o cristal mais límpido.

O sino do templo tocou lá longe, no mundo dos homens, ressoando naquela atmosfera perfeita pela última vez. A passagem não mais existia. Ela ainda sorria. Ele sorriu de volta. Não sabiam exatamente que lugar era aquele, mas não importava. Estavam, finalmente, em casa.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Arte e Natureza

 Quando se olha a imagem acima, temos a impressão de estarmos diante de uma pintura abstrata. As linhas coloridas, dispostas em harmonia, os ângulos precisos emoldurados por espaços meio sinuosos, preenchidos com um oportuno cinza cromático, onde o olhar pode pousar para descansar... Tudo isso nos dá subsídios suficientes para realizarmos uma análise visual bastante satisfatória. Porém, através de outras fotos, descobrimos que a imagem não é feita de tintas ou lápis coloridos. São fotografias retratando o norte da Holanda, onde mais de 10 mil hectares são dedicados ao cultivo de flores.

Essas imagens nos servem como ponto de partida para uma breve investigação: Por um lado, não restam dúvidas de que se trata de cenários lindíssimos. Mas eles podem ser considerados, de fato, obras de arte? Podemos afirmar que um pôr-do-sol, por exemplo, ou o canto de um pássaro são, por si sós, dotados de valores artísticos? Essas são questões complexas e muito frequentes por parte de estudantes de arte.

Por definição, arte, enquanto linguagem e expressão, é tudo aquilo feito pelas mãos do homem com intenção de gerar uma experiência estética. Um pôr-do-sol pode ser belo, mas é o resultado de certas causas naturais. Podemos admirar o canto de um rouxinol e achar desagradável o grasnar de um corvo, mas um pássaro não é melhor “músico” do que o outro, ambos estão apenas se comunicando, só que cada um produz o som que lhe é particular. Logo, os elementos da Natureza, por mais bonitos ou interessantes que sejam, não constituem arte por si próprios.

Contudo, o homem pode se apropriar daquilo que observa para gerar um tema que leve a um produto artístico. Uma obra de arte poderá, sim, ter suas origens na natureza. Um compositor pode ser inspirado pelo canto de um pássaro ou um pintor pode emocionar-se com as tonalidades de um pôr-do-sol. No entanto, precisamos ter em mente que aquilo que o artista observa na natureza vai tomar parte de sua obra como o tema, ou seja, um assunto, trabalhado por meio de técnicas para realizar as suas intenções. 
       
No caso do cultivo das flores, o objetivo de tais disposições pouco tem a ver com a estética e, sim, com a separação das diferentes espécies. Então, podemos dizer que, não as paisagens, mas as fotos em si constituem obras de arte, assim como aconteceria com uma pintura ou mesmo uma música inspiradas por tal visão. Artista mesmo foi quem fotografou as flores usando sua subjetividade e recursos visuais particulares para encontrar ângulos e formas interessantes que somente seu olhar foi capaz de identificar.

Todo trabalho de arte deve ser, por definição, artificial, originado pelo incansável espírito criador do homem.