terça-feira, 16 de agosto de 2011

Conto: Presente - Parte 2

Para ler a parte 1, clique aqui.

A fraca luz da lua brilhou com respeito naquela superfície. Era uma pedra, tão lisa, redonda e translúcida que parecia ser feita de vidro. Naquele momento, pensava nunca ter visto nada parecido. Segundos depois, junto com uma revoada de insetos que zuniu por um tempo em torno de minhas orelhas, lembrei-me de algo palidamente semelhante que minha avó, um dia, havia me mostrado. O brilho era o mesmo, mas a que ela possuía era quase nada, uma migalha, perto do peso e esplendor que eu guardava na mão fechada. Outro pensamento, ainda mais caloroso, surgiu. Ela dizia que aquele tipo de pedra possuía muito valor no mundo antigo.  

Minha avó possuía um anel. Nunca esqueci a forma como ela o guardava, a reverência de suas mãos ao pegá-lo. Parecia haver tanta coisa nele. Ela não me disse nada, mas, de alguma forma, sei que a maneira com que ela o olhava era a forma com que ela já havia olhado para alguém, que já não existia. Bem, a escassez acabou levando aquele anel, como a quase tudo o que possuíamos. E, naquela hora, com os tornozelos dormentes por causa da água gelada, pensei que não poderia haver nada melhor para trazer minha avó de volta. Ainda que ela nunca mais parasse de sonhar, ao menos que sonhasse aqui, no mundo real, junto comigo.

É claro que aquela pedra não pertencia ao córrego. E eu logo entendi como ela havia chegado até ali. Talvez, um pouco mais adiante, encontrasse outra! Quem sabe, além de presentear minha avó, não conseguisse alguma comida com o homem da carroça...

Foi assim que decidi, sem pensar muito, andar contra a leve corrente, para além do ponto onde jamais havia estado. Uma larga fenda no teto permitia a entrada da luz da lua e clareava bem o caminho. Quanto mais eu seguia, mais a água ia ficando fria e volumosa. Ao mesmo tempo, o caminho ia afinando, afinando, os pedaços de pedra pareciam querer se fechar sobre mim a qualquer momento.

A parede final da gruta estava bem próxima. Já sentia o toque gelado da água em minha cintura, quando tropecei em algo no fundo e mergulhei de barriga, apertando a pedra entre os dedos com tanta força que até me esqueci de proteger o rosto.

Algo duro e pontiagudo recebeu minha queda. Tentei levantar, mas acabei tornando a cair, agora de costas, chutando e espalhando a água, que parecia molhar pela primeira vez a parte alta das paredes rachadas. 

Agora totalmente encharcado e muito assustado, tentei reduzir a velocidade dos meus movimentos, enquanto tateava o chão invisível, procurando reconhecer o que havia me derrubado. Todo o meu braço tremeu, quando minha mão encaixou-se em outra. Em um cumprimento bizarro, levantei da água, pelos dedos crispados, um braço esquelético. Liberei a respiração, mais calmo. Não era nada vivo. Já vi e toquei em corpos o suficiente em minha vida para adquirir total indiferença quanto à maioria deles. Sentindo o peso que puxava o braço para baixo, esforcei-me para erguer o restante do cadáver. Ele era muito escuro e deformado. Não dava para saber sua idade, ou se era homem ou mulher. De qualquer maneira, não havia nada nele que pudesse me interessar.  Era a janela, com molduras douradas, às suas costas, que me prendia a atenção naquele instante. Afastando o corpo que, por conta de nosso encontro, desmontou-se em pedaços, abri-a. Muita água escorreu pela abertura retangular, até cair ruidosamente no piso de madeira que havia do outro lado. 

O lugar era imenso. O teto, alto e arredondado, mostrava figuras coloridas, quase todas incompletas, por causa das tintas descascadas e dos inúmeros buracos, por onde a lua ainda me seguia. Na parede, a água do córrego continuava caindo pela abertura da janela, como se eu a tivesse ajudado a, enfim, encontrar aquele lugar. Aquele salão foi a coisa mais bonita e destoante desse mundo que eu já vi. Quanto brilho. Quantos tecidos diferentes, e cores. Desejei muito poder vê-lo como um dia foi, sem toda aquela poeira e detritos.

Havia uma mesa, muito, muito grande e larga. Cadeiras espalhadas por todo canto. Em cima de uma parte ressaltada do chão, estava um objeto tão estranho que nunca consegui sequer imaginar seu propósito. Ah, talvez você saiba me dizer, se eu descrevê-lo. Escute bem. Parecia um arco de caça, que o velho Anderson tinha. Só que gigantesco. E com muito mais cordas esticadas em sua armação. Eu empurrei-o, levemente, e percebi o quanto era pesado. Certamente não servia para ser transportado, muito menos para ser usado na caça. Era todo da mesma cor amarela e brilhante que cobria a janela e algumas partes das paredes. Quando passei os dedos pelas cordas tensas, elas fizeram um som que eu nunca havia escutado antes. Era uma sensação... irritante. Para quê uma arma precisaria de tantas cordas, e, o pior, para que fazer tanto barulho? O que era aquilo? Você é mais velho, sabe me dizer? E então? Não? Ah, me esqueci. Você não se lembra de nada. Desculpe.

Bem, logo ao lado daquela coisa, como se tivesse apenas acabado de recostar contra a parede para descansar, eu a encontrei. Cabelos presos acima da cabeça, enfeitados com fitas azuis, a mesma cor do vestido longo. Os olhos abertos miravam o nada, completando uma expressão de total desolação. Não, ela não estava descansando. Estava morta. Presa naquele salão desde décadas que eu nunca conheci.

Continua...

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