segunda-feira, 21 de março de 2011

Conto: Presente - Parte 1



Ei! Está acordado? Ah, que bom. Já estava começando a ficar preocupado. Venha. Segure minha mão para levantar. Vamos, você tem que me ajudar um pouco com isso. Afinal, tenho apenas a metade de seu tamanho. Não consegue, não é? Certo. Encoste aí, na parede, por um tempo. Fique tranquilo que eu estou de olho em tudo. Estive por aqui, vigiando, durante toda a noite. Minha avó sempre disse que eu era muito bom nisso. Olhos atentos, ela dizia.

 Eu sou Martin. Como se chama? Não se lembra? Tudo bem. É comum, hoje em dia. Você sabe, essas doenças esquisitas. De repente, é como a chegada de uma onda invisível, mudando tudo. Numa hora aparece um monte de gente tossindo sangue. Noutra, as mãos e pés incham tanto que chegam a explodir. E, agora, tem essa coisa com a memória. Todos parecem estar esquecendo tudo. As coisas vão mudando, e as pessoas, sumindo do mundo. Pois, é. Uma dessas ondas levou embora a minha velha avó, e me deixou sozinho. Sabe, por muitas vezes queria não lembrar de nada, como você.

Você está com fome? Eu também. Quanto a isso, não posso fazer nada. Não como direito há muito tempo. Após discutir muito com minha avó, o homem da carroça parou de passar por perto da nossa casa. Logo depois, eu descobri o motivo. Não possuíamos mais nada que pudéssemos trocar por comida. Desesperada, minha avó chegou a oferecer e ele nossos livros. Nós tínhamos três. Mas ele não aceitou. Não sabia o que fazer com eles. Engraçado, não é? Ele era velho, e não sabia ler. Eu sei. Minha avó não sossegou até me ensinar. Mas quando eu não estava com paciência, ou quando a fome era muito forte, ela apenas me chamava e contava histórias do mundo de antigamente.

Como as coisas foram bonitas um dia, eu te digo. É pena que você já não se lembre de nada. Pela sua idade, deve ter conhecido ao menos um pouco do mundo de antigamente. Coisas que eu não consigo sequer entender. As festas, as danças... Como poderia ser isso? Ah, havia música, também. Isso eu não sei mesmo o que era. Acho que era um som, feito especialmente para as pessoas ficarem se mexendo. Elas achavam bom, de alguma forma. Minha avó, pelo menos, gostava bastante de dançar. Embora nunca tenha visto ninguém dançando de verdade, na minha cabeça parece ser uma coisa maravilhosa. Ela tentou cantar para mim, uma vez, para me mostrar como era a música. Ela tentou, e tossiu muito, por muito tempo. Disse que já estava velha, e sua voz não era mais a mesma. Depois, bebeu, de uma só vez, quase meia garrafa de Relâmpago Azul, e fechou os olhos, com uma expressão aliviada. Eu continuei sem entender. Acho que música devia ser como o Relâmpago Azul. Não serve para muita coisa, mas as pessoas gostam mesmo assim, porque sentem alívio, porque descansam da realidade. Sei lá. Acho que estou com sono.

Sabe, não quero dormir em casa hoje. Não quero voltar nunca mais. Porque não tem mais nada lá. Minha casa era ali, do outro lado do túnel. Lá era seguro, na maior parte do tempo. Você sabe, as construções demolidas, cercando tudo. Raramente tivemos problemas com gente de fora. Quando era mais novo, achava que tínhamos sorte. Hoje vejo que poucos lugares são piores do que aquele para viver. Atrás dos prédios, há uma pequena aldeia. Umas quatro famílias, se ainda estão todos vivos. Parei de ter medo de bandidos querendo tomar nossa casa quando entendi que nós é que nunca tivemos forças para brigar por um lugar na aldeia. Éramos só nós dois, espremidos entre o entulho, entre as coisas que ninguém mais queria. Tem um grande tubo de metal onde dá para dormir, e um córrego marrom que passa perto dele. A minha avó gostava muito de ficar sentada ali, observando aquele pouquinho de água escorregar sem parar até uma fenda na parede mofada, do outro lado. Na verdade, não havia muito mais que ela pudesse fazer, na maior parte do dia. Desde que eu me lembro, ela já não andava direito.

Mas, espere um pouco. Falando assim, pode dar até uma impressão errada sobre ela. Ela tinha uma língua que trabalhava sem parar, e mãos que abanavam para todo lado, acompanhando cada palavra sua. Ela não precisava de pernas saudáveis para preencher totalmente aquele lugar. Nunca ouvi um só lamento sobre sua vida ou sua sorte. Mesmo quando as coisas começaram a piorar.

Até hoje eu ainda não entendi o que houve com ela. Talvez não haja mesmo como entender. Mas ela começou a ficar mais e mais distante,  quieta. Não reconhecia mais as coisas, não ouvia o que eu falava. Era como se não ligasse mais para a realidade. Pior. Parecia não ligar mais para mim.

Na época, eu achava que era a fome. Odiei com todas as forças o homem da carroça e, até mesmo, as pessoas lá do vilarejo. Mas eu tinha mais raiva mesmo era de mim. Eu não sou mais uma criancinha, afinal. Precisava fazer alguma coisa. E como eu queria ajudar! Encontrar uma maneira de melhorar a nossa vida.

Essa maneira surgiu diante de mim por acaso, em uma madrugada, nas águas frias e pegajosas do nosso córrego. Minha avó estava com febre, suava e delirava. Tinha muita sede. Eu me lembro de mergulhar uma lata vazia nas águas do córrego, e erguê-la, enojado. Ou ele estava se deteriorando muito rápido ou eu nunca havia reparado no odor que exalava. Não serviria aquela água à minha avó, doente como estava. Quem sabe, mais adiante, o curso da água não estivesse mais limpo?

O córrego surgia de uma caverna, feita com os restos de dois edifícios, tombados um contra o outro. Lembro-me que nunca me senti tão sozinho quanto naquela madrugada em que mergulhei os pés na água fria e mais escura que o céu. Estava profundamente triste. E, já naquela noite, sabia perfeitamente que não queria mais ficar ali. Era apertado demais, sujo demais. Acho que já lhe disse tudo isso. Não disse? Esquece. Deixe-me continuar.

Quando achei que já havia entrado o suficiente na caverna, mergulhei minha latinha novamente. E, do fundo dela, veio um barulho totalmente inesperado. Na mesma hora, ergui as mãos e tombei a lata, com cuidado, vedando a abertura com os dedos, impedindo a saída do que quer que tivesse caído ali dentro. Segundos depois, algo mais frio do que a água, mais suave ao toque do que o tecido mais novo e mais limpo, procurava abrigo no centro de minha mão em forma de concha.
Continua...

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