segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Tirinha - Arte #1

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Conto: Recusa

“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro” 
Friedrich Nietzsche


Quando a ilha despontou, embaçada e nebulosa, um ponto azulado boiando no imenso oceano, Ahura sentiu um frágil orgulho de si mesmo, sensação da qual ele já não se lembrava. Foi na prisão que ele ouvira falar daquele lugar. Aquela informação havia sido a única coisa benéfica que carregara dentro de si, após cruzar os odiosos portões que o trancafiaram sem piedade por tantos anos.

Ele queria muito recomeçar. Recuperar o tempo que perdera. Estava ávido por aventuras, faminto por conquistar algo que lhe desse algum poder, que lhe devolvesse um pouco de respeito. Talvez, assim, o destino lhe realizasse o sonho impossível de apagar toda a decepção que pusera no coração de seu velho mestre. Decepção que oprimia a ele próprio tanto quanto o mar à minúscula ilha na qual acabava de pôr os pés.

Ahura puxou o barco com dificuldade, fazendo-o arrastar o casco na areia quente até estar quase inteiramente fora d’água. Suas habilidades de navegação ainda estavam intactas. Mas, quando esticou o corpo, percebeu o quanto estava cansado. Aquela havia sido uma longa viagem. De fato, a distância que acumulara atrás de si era como um punho gigantesco pressionando seus ombros. Um tanto contrariado, acabou admitindo para si mesmo que não sentia apenas o cansaço de um viajante. A prisão lhe roubara tempo demais. Aquilo, aquele ardor na carne e frio nos ossos, eram o que sentiam os velhos. O guerreiro chegou mesmo a questionar, por um momento, se a viagem havia sido uma boa ideia. Seus passos eram lentos. Sua arma era mais um cajado do que a foice de guerra com que seu mestre havia lhe presenteado e ensinado a usar, em um dia muito distante no tempo. Mas, sacudindo a cabeça, concentrou-se apenas no desejo fervente que o guiara até ali. Olhou para sua bússola. Se seu colega de cela estivesse falando a verdade, em pouco tempo estaria pisando em um lugar de onde ninguém jamais havia voltado. 

Após a estreita faixa de areia branca que dava forma à praia, surgia uma grama rala e  ressecada pela ação incessante do sol. Tudo era completo silêncio. Nem mesmo o forte vento parecia mover as folhas amareladas das árvores de troncos grossos que começavam a se adensar e encobrir a visão. A ilha era pequena e distante, muito distante de qualquer outro lugar onde vivessem homens. Mas não era apenas o isolamento que mantinha o que viera buscar ainda intacto. Histórias sussurradas nos bares portuários descreviam um horrendo e invencível guardião.

Ahriman era o nome daquele guardião. E ele havia sido um príncipe de um reino próspero, um dia. Ou um poderoso feiticeiro, aprisionado na ilha por um rival. Ou um aventureiro de terras distantes, cuja embarcação naufragou perto dali. E agora ele era escamoso, ou alado, ou teve o rosto totalmente apagado pelos ventos salgados, restando apenas presas disformes em meio a uma mancha sombria. A verdade poderia estar escondida em alguma daquelas lendas, ou não ter nada a ver com nenhuma delas. Ahura sempre achou engraçado o fato de todos terem algo a acrescentar à história sem, no entanto, saber sequer em que direção navegar para chegar até ali.

Um uivo quase humano ressoou próximo ao seu ouvido. Dando um passo para trás, o guerreiro evitou, por puro ato reflexo, a primeira e feroz investida. De onde vieram aquelas garras, afinal? Ahura procurou acalmar a respiração. Sabia que não havia tempo para se perguntar coisa alguma. Tudo o que podia fazer era assumir sua posição defensiva e colocar em prática o que treinara por tantos anos. Enquanto sua mente lutava com as memórias escorregadias de golpes e posturas defensivas, o monstro apresentou-se por inteiro, saltando da copa de uma das árvores decrépitas.
Ahura lutava consigo mesmo para crer em seus olhos. Ali, parado à sua frente, o guardião erguia o corpo e virava lentamente seu rosto negro e deformado. Aquilo não era parecido com nada que ele tivesse conhecido. Era como um primata gigantesco, com garras felinas brilhando nas pontas dos dedos grossos. Naqueles olhos amarelos estava claro que ele sabia o que Ahura viera pegar. E, mais nítido do que isso, uma vontade selvagem, uma raiva instintiva que, em apenas um segundo, destroçou qualquer esperança de vitória que ainda habitava o peito de seu frágil oponente.  

O guerreiro apertou os olhos e esperou que, quando a fera saltasse em sua direção, tivesse forças para repeli-lo, ou, ao menos, sorte para desviar o corpo. Mas logo Ahura descobriu que o guardião não era nenhum animal. Porque não fez o que um animal faria. Juntando as mãos e abaixando a cabeça, mostrou que ali restara algo de um homem. Talvez naquela reverência estivesse guardada sua essência, a parte que sempre sobreviveria, a despeito do que sofresse.

Porém, quando o embate começou, aquilo se foi. Ahriman batia com a força de cinco soldados, arranhava como o fariam os dentes de um demônio. Cada vez que lançava suas garras, Ahura era empurrado para trás. Aos poucos, as investidas do guerreiro transformaram-se em uma fuga meio rastejada, em direção às entranhas da ilha.

Quando a arma caiu de suas mãos, Ahura começou a se preparar para o fim. Não era assim que deveria ser. Ele queria mais. Merecia mais. O suor ardia em seus olhos. Acima de si, o corpo negro do guardião era a escuridão inabalável de um céu tempestuoso.

Mas o sol brilhou por um momento, enquanto Ahriman levantou-se lançou os braços para trás da cabeça, preparando o último golpe. Ahura não via nada, não se lembrava de nada, não queria nada. Mas tinha certeza de que tudo o que fizera a partir daquele momento não passara por sua consciência. Não planejou o golpe que dera, com os dedos esticados, no ventre exposto do guardião. Não anteviu a violenta reação daquelas garras e, ainda assim, esquivou-se delas. Não pensou se suas pernas aguentariam afastar aquele corpo maciço, mas chutou-o com sucesso para longe. Sentiu que aquilo não era ele, mas seu mestre. Aquelas ações eram seus ensinamentos, enraizados tão fundo quanto a reverência que ainda dotava o guardião com uma gota de humanidade. Ahura agora sabia que não haveria tempo, doença, medo ou desesperança capaz de apagar aquilo que um dia aprendera.       

Ao tentar se por de pé, o guerreiro sentiu que se apoiava em algo de formas diferentes. Aquela pedra, alva e perfeitamente retangular não havia sido feita assim pela natureza. Nem a que se apoiava nela. Nem a seguinte.

Os olhos de Ahura ergueram-se para tentar assimilar o que era aquilo. E todo o seu corpo maravilhou-se com o impossível. Só poderia ser ali. No topo daquela escadaria estaria guardado seu merecido prêmio.

Seu sangue fervia enquanto lançava-se para cima, degrau após degrau. Não importava se o guardião o estivesse seguindo. Tudo o que ele queria era subir. Se fosse preciso lutar novamente, que fosse lá em cima.

Quase no topo da escada o guerreiro já não se continha de tanto interesse pelo que se esconderia poucos metros acima. No entanto, dali, ele podia ver melhor por entre as árvores. E seus olhos, subitamente, estavam presos na figura deformada que não subia em seu encalço, mas sim, caminhava para longe. Caminhava para o mar. Para seu barco. Só então ele entendeu tudo. Ahriman não lutara de verdade. Nem era, de fato, um guardião. Ele não passava de um prisioneiro, como o próprio guerreiro havia sido, até meses atrás. E, na ânsia de vencer o monstro e conquistar seu tesouro, Ahura estava a ponto de oferecer a si mesmo para substituí-lo naquele lugar.

Aquela descida era quase uma queda, dolorida e incontida. O desespero que tomou seu espírito de assalto o fazia ignorar a dor nos músculos e as escoriações. Naquele momento, só lhe importava chegar à praia, mais nada.

Ahriman rugia alto. Seus braços poderosos acabavam de colocar o barco de volta na água. Ele apoiou uma das mãos na borda e quase sorriu, sentindo a madeira balançar, acomodando-se naquele enorme leito azul.  E foi assim, quase sorrindo, que seu rosto tombou contra a areia úmida. Orelhas pontiagudas e presas retorcidas rolaram até o mar. Os olhos amarelos do guardião apagaram-se pouco antes de sua cabeça afundar de vez, retirando um breve suspiro da água inquieta. O corpo órfão fez barulho maior, esguichando espuma e sangue negro ao tombar, mutilado. Logo atrás, apoiado em sua foice de guerra, Ahura apenas olhava, sem saber muito bem o que sentir.

Ele havia vencido. Na ilha, era somente ele agora. Tudo estava em paz e silencioso, como quando ele chegara. O guerreiro agarrou o pequeno barco com ambas as mãos, pronto para arrastá-lo de volta para fora do mar. E então, olhou para trás. Pensou naquela escadaria de pedras brancas, invisível por conta da massa de folhas e galhos castigados. Ali, no topo daquela escadaria, estava o troféu que poderia mudar a sua vida.

 Gostaria muito de não ter que decidir. Gostaria que algum relâmpago sobrenatural tivesse derrubado a escada, que a ilha estivesse, de alguma forma, condenada a sucumbir a uma saraivada de flechas prateadas vindas dos céus e ele tivesse que partir imediatamente. Mas, não. Não havia mais perigo, nem urgência. De repente, o guerreiro pôs-se a pensar no que seu velho mestre faria.

Sob o calor cegante do sol, ele quase viu uma figura baixa e sinuosa fluir de entre as árvores até onde estava. Era ele. Só que há alguns anos, quando ainda o recebia em casa com um abraço preparado. O ancião ergueu as sobrancelhas e disse, com a firmeza costumeira, que Ahura nunca fora realmente capaz de saber o que se passava dentro dele próprio, em primeiro lugar.  Como poderia saber o que era preciso para se tornar um homem melhor do que era? 

Imagens seguiram surgindo, sobrepondo-se, vertiginosamente. Uma cascata que jorrava ouro líquido ou a poção da vida eterna; artefatos que concediam habilidades divinas ao seu portador; um livro contendo a derradeira verdade sobre o mundo. E o desfile continuaria, se o guerreiro não curvasse o corpo e lavasse aquele brilho com a fria água do mar. Poderia ser tudo aquilo, e muito mais, até. Certamente, ele próprio não resistiria e acabaria aumentando aquela lenda, acrescentando tais visões aos seus futuros relatos.

Mas agora ele não tinha mais dúvidas. Seu mestre simplesmente daria de ombros e não voltaria a subir um degrau sequer. Afinal, se o próprio guardião daquele troféu estava disposto a trocá-lo pela chance de deixar aquele lugar, o que quer que houvesse no topo daquela escada não valeria à pena. Qualquer que fosse o tesouro, não era nada, se Ahura o comparasse com o mais vago risco de perder novamente sua liberdade.

Ahura queria que seu mestre estivesse ali naquele momento. Porque o homem que se sentou naquele barco e empurrou-o para longe da ilha, sem ao menos olhar para trás, era o mais vitorioso dos guerreiros. Porque estava em paz. Porque agora reconhecia e sabia cuidar do que tinha de mais precioso.

Tirinha - Filosofia #3

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Conto: A Última Lenda



A qualquer momento, qualquer coisa poderia acontecer. Dentre tudo o que Esther havia aprendido na vida, essa era a maior da sua coleção de verdades. Era um pensamento que lhe assaltava com freqüência, como uma lembrança desbotada. Quem sabe, tais palavras não tivessem sido sussurradas, há muito, em seus ouvidos. Ela não saberia dizer. Porém, foram elas as primeiras a alcançarem a superfície de sua mente, após estranhos sons, pouco a pouco, tirarem-na de seu mundo de sonhos. Os conhecidos sons cadenciados de pés militares espancando o chão de terra.

Ainda colocando apressadamente um véu sobre a cabeça, escancarou as cortinas. Com quase a metade do corpo saindo da janela de seu quarto, Esther perguntou sobre a situação para um dos guardas que passava ali por baixo. Ele, ao ouvir sua voz, virou-se, escancarou imediatamente um largo e respeitoso sorriso e pôs-se a falar.

O rapaz contou que os inimigos do Leste estavam chegando. Muitos deles. Contou que, durante a madrugada, um mensageiro dos primitivos havia surgido, portando uma carta, repleta de exigências descabidas. Eles não queriam mais prestar seus serviços nem pagar seus tributos. E, pior falta de todas, registraram, em vermelho, palavras de negação e repúdio aos Costumes Eternos. Como o mensageiro deixou bem claro que uma negativa resultaria em ataque imediato, nada mais podia ser feito a não ser organizar as defesas da cidade. Seria um massacre hediondo e inútil, mas o general esperava exterminar o mínimo possível dos pobres selvagens, antes que eles sinalizassem com a rendição e retornassem para suas terras.  

Esther sorriu de volta para o rapaz, desejou-lhe boa sorte e disse-lhe que já podia ir. Com uma larga reverência, ele agradeceu e retomou seu caminho.

Não, Esther não possuía familiares importantes nem exercia qualquer relação com o poder. Sequer gostava de falar sobre política. Mas era tratada com muito mais deferência do que a rainha mais justa do reino mais próspero. 

Ela ficou ainda um pouco na janela, apenas observando, em silêncio. Não gostava nada de ver aquele cenário tomar forma, apesar de entender que não havia outro jeito. Todos sabiam que, cedo ou tarde, aconteceria. Mas, nos rostos dos lanceiros, que agora acabavam de marchar pela Estrada Grande, não havia o menor traço de temor, muito menos, motivos para isso. A cidade era forte, civilizada e bem protegida, tanto quanto os homens eram bem treinados. As coisas estavam completamente sob controle. Tudo o que ela deveria ou poderia fazer era esperar, assim como as demais mulheres. Mas ela não era como as outras mulheres.

Uns diziam que havia mais pessoas como ela no mundo, em tempos remotos. Um reino inteiro deles. Outros, que ela fugira de alguma terra mágica, um lugar habitado por lendas esquecidas. Assim a chamavam, às vezes. A última lenda a viver entre os homens. O fato de ela existir há tantos anos sem jamais envelhecer fisicamente, além da idade que aparentava, só alimentava tais pensamentos. Nunca fora hostilizada ou discriminada, como acontecia com aqueles que ostentavam traços estrangeiros ou os portadores de deformidades. Ao contrário, consideravam-na uma dádiva para a cidade. Era consenso que ela seria portadora de poderes mágicos adormecidos, ou mesmo, que os escondia, influenciando secretamente os acontecimentos. Toda sorte de superstições envolvendo seu olhar, suas lágrimas ou sua voz já havia sido recitada como verdade por jovens e anciãos. Por décadas, ela fora a inspiração para canções, pinturas e esculturas. Incontáveis homens receberam sol e chuva ali mesmo, onde há pouco estava o jovem guarda, à espera de um sorriso, um olhar que fosse. Mas Esther apenas assistia ao mundo, eternamente debruçada no alto de sua janela, obrigando-se a corresponder com rigor à imagem criada para ela.

Logo, pouco havia para ver lá fora. Os últimos soldados sumiram pelas aberturas da muralha interna, deixando para trás apenas os ecos abafados de seus passos. Voltando-se para o interior de seu quarto, ela sentia-se tudo, menos aquilo que pensavam dela. No fim, sozinha em um mundo onde ninguém a vira nascer, ela nunca poderia realmente negar coisa alguma.

Ela passou os dedos finos e delicados pelas cortinas leves, e continuou, contornando as paredes côncavas e nuas que formavam a grande oval que era seu quarto. Nada além de um espelho retangular pendia das paredes. Por algum motivo, ela nunca gostava das pinturas que via, por mais precisas e realistas que fossem. Embora sempre fosse presenteada com uma delas, jamais quisera nenhuma para si, muito menos ser, ela própria, eternizada em tintas. Preferia as coisas como eram: paredes nuas e uma incessante profusão de imagens jorrando diretamente de sua própria imaginação.

Alinhando o corpo com o espelho, ela olhou-se demoradamente. Os olhos, grandes e ofuscantes como duas gemas cor de mel, passeavam por seu rosto pálido. Os lábios, pequenos e vermelhos como um fruto, esticaram-se em um sorriso conformado. Talvez, um dia, ela, enfim, se acostumasse.

Suas delicadas orelhas pontiagudas giraram em direção à janela, sobressaindo-se ao véu azul escuro que ainda pendia de sua cabeça. O sino do Templo da Luz gemia um lamento grave e repetitivo. Agora, ela sabia que o ataque havia realmente começado.

Esther não precisava estar lá, diante das muralhas, para saber o que deveria estar acontecendo naquele momento. Sentando-se na beirada da cama, ela entregou-se àquele exercício, como forma de amenizar a solidão e a sensação de impotência que permeavam o ar.

Ela podia ver, diante de si, as fileiras de arqueiros e as pedras em chamas voando. Os cavalos trotando em longas fileiras, antes de caírem para trás, como um só, ante o impacto das flechas e lanças. Os gritos passionais dos primitivos, o frágil armamento de madeira e penas despedaçando-se contra o metal. E, por último, espadas largas e curtas decapitando os últimos atacantes, cujos olhos, mortalmente arrependidos por tamanha ousadia, sequer teriam tempo de se fechar, e assim permaneceriam, por alguns dias, ou enquanto durassem nas cabeças espetadas diante das muralhas.

Assim, o campo de batalha foi se desenhando cada vez mais nítido na mente de Esther, até descer dos céus em seu entorno, conforme seu corpo foi tombando lentamente sobre a cama macia, entregue ao sono. Sua consciência havia cedido lugar a um longo e vívido devaneio. Logo, unicórnios, espadachins alados e gigantes reluzentes tomaram para si a guerra dos homens, lançando feixes luminosos uns nos outros. Ela viu um forte guerreiro, cujo corpo era feito de bronze e a voz explodia, em fúria e revolta, afetando aliados e inimigos como o fio da espada mais poderosa. Ele vinha acorrentado pela cintura e pescoço, sob os músculos de dúzias de guerreiros. Marchava e lutava pela liberdade, que ansiava conseguir antes de ser lançado contra o inimigo. Mas parou, no momento em que ergueu os olhos flamejantes e, em lugar do céu, viu o rosto de Esther. E ela sentiu o que ele sentia.  Eram, os dois, prisioneiros e solitários. Ela, da veneração civilizada. Ele, da força bruta, da fúria cega de seus captores, que o arrastavam como uma arma de guerra, um aríete bestial e sem alma.  Eram, os dois, estranhos no mundo. E estavam em busca de um caminho de volta, até então, impossível de ser encontrado.

Anoitecia quando o sino tocou novamente. Pulando da cama, Esther correu até a janela, varrendo seus sonhos sem sentido para longe e já pronta para acenar e congratular os heróis vencedores.

Mas os passos que estrondavam em sons desgovernados não eram de vencedores. Soldados e lanceiros fugiam, entre metal partido e gritos de desespero. Esther não podia ver a ferida mortal aberta na majestosa muralha externa, pela qual jorravam sobreviventes dos dois lados, mas a adivinhou, tão logo o primeiro selvagem surgiu, socando o peito e erguendo a clava. Um invasor, exibindo as presas, triunfante, sobre o chão de sua cidade. Seu lar. 

Em pouco tempo, ela não via mais defensores. Apenas as cores fortes, as barbas negras e os cabelos emaranhados dos inimigos.  

Tudo parecia cinza para Esther. As coisas, cujos significados já eram tão frágeis em sua mente banhada pelas marés de quase um século, perderam totalmente a importância. O mundo lhe parecia pequeno, fútil e distante. 

O sino tocou novamente. Mas, agora, ele gritava, fendido e estridente, castigado pelas mãos insolentes do inimigo, homens que sequer assimilariam sua real utilidade. Como formigas, os selvagens venciam portas, portões e escadarias, violando e depredando os edifícios que encontravam em seu caminho.  Ao longe, gritos femininos e infantis confirmavam a Esther o desfecho do ataque e o cenário de pesadelo no qual agora vivia. Qualquer coisa, a qualquer momento, poderia acontecer. Essa, de fato, era a maior verdade de todas.

Ele escancarou a porta. Estava sujo e transpirava como um cavalo. O olhar era luminoso e ameaçador, como o de um cão guardião. Ele escancarou a porta e um trovão entrou com ele. Mancando, empurrou a si mesmo até o centro do cômodo. Mesmo com o discernimento afetado, ele sabia que era ali. E foi ali que ele, enfim, parou de fingir e admitiu que estava morrendo.

Encontrara o quarto completamente vazio. Arfando pesadamente, ele girou a cabeça, contemplando as paredes nuas e arredondadas. Nuas, exceto por uma pintura de moldura retangular, na qual pairava um meio sorriso vermelho como o sangue que manchava o chão. Um sorriso que ele, de algum modo, reconheceu.

Ele viu-se prisioneiro do fascínio que aquela imagem exercia. Ela usava um véu azul escuro, que envolvia seu rosto com perfeição e contornava suas orelhas, inumanas, porém belas, ao seu modo. Aquele rosto pálido parecia real, como se lhe acenasse de uma janela. Ele quis se aproximar, tocá-lo. De repente, todo o horror que acabara de viver o agredia mais do que seu ferimento fatal, tão descabido e estúpido lhe parecia agora.

Cada passo roubava o pouco de vida que lhe restara no corpo, cada respiração deixava seus pulmões mais ocos. Mas ele continuou. Venceu os metros que o separavam da pintura e estendeu um dos braços. Sabia que era loucura, mas não era somente o medo da solidão no momento final. Ele queria mesmo era sentir a maciez daquela pele, ouvir o som daquela voz. E quis tanto que seus dedos formigaram com um calor repentino e curativo. Abrindo bem os olhos, ele viu um rastro negro engolfá-lo, como se a própria noite, em seu rodamoinho de sonhos e pensamentos, abandonasse toda a decadência exterior para gerar uma ponte indefinida entre dois mundos. A mulher da pintura retangular ganhou vida, o brilho que a rodeava fustigava a pele como mil agulhas. Incapaz de resistir por mais tempo, ele tombou, ainda estendendo-lhe uma mão suplicante.

Segundos depois, o guerreiro via-se erguendo o corpo, apoiando-se em um dos joelhos. Às suas costas, o quadro de moldura retangular retratava uma parte do quarto onde estivera. À sua frente, a mulher, agora tão real quanto ele próprio, permanecia de pé, sorrindo, cercada por todo um mundo que ele sequer seria capaz de imaginar.

Não havia mais sombras. O ar era puro e luminoso. Ainda que vistas à distância, pousadas em um chão que ondulava como o mar, as construções eram gigantescas. E azuis, brancas e etéreas, como as águas decididas de uma cascata. E, misturados com tudo o que viam, ele era o bronze mais polido, e ela, o cristal mais límpido.

O sino do templo tocou lá longe, no mundo dos homens, ressoando naquela atmosfera perfeita pela última vez. A passagem não mais existia. Ela ainda sorria. Ele sorriu de volta. Não sabiam exatamente que lugar era aquele, mas não importava. Estavam, finalmente, em casa.