quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tirinha - Filosofia #1

Resenha: Tron - O Legado

ATENÇÃO – CONTÉM SPOILERS!

Um jovem anti-herói recebe uma pista sobre o paradeiro de seu pai, vinte anos depois de seu desaparecimento, e acaba imerso em um mundo virtual governado por um programa obcecado pela perfeição, que deseja desesperadamente materializar-se no mundo real.

Quando “Tron: Uma Odisséia Eletrônica” foi lançado, os arcades eram uma febre mundial. Os computadores e tudo relacionado a eles eram tratados com deferência e cerimônia. Programar era uma arte oculta e impossível a meros mortais. Os usuários, uma elite, em posição privilegiada na vanguarda tecnológica. O mundo era alguma outra coisa, bem diferente.

Sendo assim, é preciso estabelecer alguns pontos, antes de continuarmos. Se a trama iniciada com o primeiro “Tron” não é assim tão original, vista com olhos de hoje, experimentados por Matrix e afins, nos anos 80 era, e muito.  Talvez, aí esteja a única grande diferença entre os dois. Roteiro, atuações e visual seguem os mesmos padrões e características, seja isso bom ou mau.

Falando em visual, uma única palavra o define muito bem: neon. Muito neon, contra o negro céu relampejante. Assim é o cenário que se desdobra em todas as direções durante quase a totalidade do filme. Tanto neon assim deixou alguns efeitos colaterais: o brilho do alaranjado escuro lembra muito o império de Star Wars – não por acaso é a cor dos vilões – os outros, Blade Runner. Não que isso fosse humanamente evitável (veja aqui uma excelente explicação para o uso das cores no universo do fillme).

Aliás, a saga de George Lucas vem à mente até em outros momentos, como quando o “garoto novo” assume o lugar de artilheiro na nave em fuga, ou quando Obi, ou melhor, Kevin flynn, surge retumbante em seu manto esvoaçante em meio à luta na boate de Zeus. Voluntárias ou não, tais citações são divertidas e, quando surgem, até motivam um cutucão em seu amigo nerd.

A Trilha sonora, a cargo do Daft Punk, é, para Tron, o que os temas de Vangelis foram para Blade Runner, guardadas as proporções, obviamente. Pode-se dizer, facilmente, que a música concebida pela dupla é um dos personagens do filme, um dos mais importantes, aliás. Quanta sincronia com as imagens, quantos detalhes… Como tamanha dinâmica, profundidade e emoção podem ser expressas por máquinas eletrônicas, por enquanto, insensíveis e ainda obedientes às talentosas mãos humanas de seus programadores?

Ainda em se tratando de música, permanece na memória a cena luminosa na qual a banda Journey faz vibrar a poeira do velho fliperama, seus sintetizadores encontrando perfeita ressonância com o clima imposto pelo filme, dali em diante. Uma honrosa saudação dos queridos anos oitenta aos trintões que batem no peito para dizer aos mais jovens, entre um suspiro e outro, que viveram a melhor fase da vida na melhor década de todas. Worlds apart, infelizmente.

Após esse momento, as máquinas virtuais começaram seu desfile portentoso e impecável, pontuado por grunhidos e rugidos intensos, enquanto o grande vilão, Clu 2.0, plastificado virtualmente, balançava perigosamente na fronteira entre o feio e o assustador. Assim como em muitos momentos do Tron original, nesse caso, as limitações técnicas são absolvidas em nome de uma certa licença poética. Afinal, o personagem não é feito de carne e osso, mesmo. Por outro lado, pode-se questionar a performance caricata e o visual à David Bowie de Zeus-Aladdin Sane.

É importante lembrar que toda a referência visual e conceitual do primeiro Tron veio das restrições tecnológicas da época e da relação que a sociedade ainda ensaiava, frente aos misteriosos computadores. Muita coisa mudou, entre um filme e outro. Apesar da evolução providencial que vende bem a idéia de um cenário virtual, porém atual e vivo para o público de hoje, o filme fica um tanto melhor se o expectador não comparar a árida e negra paisagem digital do mundo governado por Clu às interfaces amigáveis e iluminadas com as quais interagimos diariamente. Também ajuda não pensar que grande parte dos temidos e veneráveis usuários está, hoje, entre os típicos freqüentadores de Lan Houses em países subdesenvolvidos, digladiando-se com o Farmville ou expondo suas sandices em redes sociais. Sorte de Kevin Flynn, que virou neon em pó sem fazer a menor ideia de como as coisas estão aqui fora.

Faltou alguma coisa? Faltou. O público fica sem conhecer muitos aspectos do funcionamento daquele universo tão bonito e bem feito. Certas metáforas poderiam ter sido realizadas, certos elementos virtuais poderiam ter sido melhor associados com o que vemos do lado de cá da tela.

Apesar de tudo isso, após o inflamado discurso do vilão, o jovem anti-herói acaba conseguindo se redimir e voltar para casa com seu elixir. Ainda bem. Até mesmo a ideia de outra sequência, tão descaradamente proposta antes dos créditos subirem, chega a ser vista com bons olhos. Talvez, sem a necessidade de tantas explicações e flashbacks, Sam encontre nela o espaço que ainda não teve para se desenvolver como personagem.

E qual é o legado do Tron original, afinal? Fácil. O Tron dos anos 80 foi aquele que “desvendou” para ingênuos olhos infantis o universo oculto nas entranhas de um computador. Foi um combustível e tanto para a imaginação de muitos moleques que passaram a enxergar motocicletas onde antes só havia um ou dois pixels coloridos. Se essa nova incursão pelo mundo de neon da Disney fizer o mesmo pelas crianças e adolescentes da década de 10, está ótimo.
 

sábado, 18 de dezembro de 2010

Paradigmas



Desejando o Papa Bonifácio VIII fazer mais algumas decorações para a sacristia da Igreja de São Pedro, mandou mensageiros percorrerem a Itália, intimando os maiores pintores da península a virem para Roma. Um destes mensageiros ouvira dizer que este artista rústico, alegre e extravagante, que dividia o tempo entre o arado e o pincel, pintara lindas paisagens de sua província natal.

Este mensageiro, entrando na cabana deste camponês pintor, disse:

- Sua Santidade, o Papa, deseja examinar seu trabalho, Mestre Giotto. Sua Santidade está chamando a Roma todos os bons artistas. Deixe-me ver alguns de seus quadros; assim decidiremos se podemos aproveitá-lo.

Giotto riu e mergulhou vigorosamente um pincel num pote de tinta vermelha. Com um traço negligente, riscou um enorme círculo num pedaço de papel, e entregou-o ao mensageiro.

- É esse o meu trabalho. Veja-o. Gosta?
- Que absurdo é esse? Estou aqui numa missão séria!

O Pintor encolheu os ombros, como se dissesse: “Deixe aqui ou leve. É o que posso fazer de melhor”.

- Então é isso o trabalho de Giotto! – disse o Papa, quando o mensageiro voltou, trazendo a amostra. – Um grande círculo vermelho e nada mais?

- Ele é um tolo pretensioso, Pai. Foi-lhe oferecida uma grande oportunidade. E o que fez, traçou um grande círculo vazio.

- Diga-me uma coisa – perguntou o Papa. – Teve ele muita dificuldade no traçar deste círculo, sem o auxilio do compasso?

- Não, Pai. Somente com um mergulho do pincel na vasilha e um traço displicente.

- Bem, bem. Não está nada mau este círculo. Na realidade, é um círculo bem redondo. Ele deve ter um bom golpe de vista e mão muito firme para fazer isso. Que tipo de homem é esse Giotto?

- Um camponês vulgar, Pai, e feio como o Satanás. Contam que ele sabe uma quantidade de anedotas pitorescas.

- E o consideram um artista?

- Dizem que pinta um carneiro ou um cachorrinho numa parede, num pedaço de cerca quebrada. E, como um milagre, a mancha imediatamente parece ter vida. Mas decerto somente os camponeses pensam assim.

- Os camponeses sabem o que falam. Eu próprio já ouvi histórias semelhantes sobre esse homem. Quando menino, não foi aprendiz do grande...

- Cimabue? Sim. Dizem que uma vez enquanto Cimabue saiu da sala, Giotto pintou uma mosca no nariz de um dos retratos do mestre. Cimabue tentou tocá-la, quando voltou. Você perguntou de que família é ele?

- É filho de um ferreiro, Pai. Pastoreava rebanhos de ovelhas, em Mugello. – Essas colinas em Mugello são muito verdes, eu me lembro. E o povo de lá é um povo simples. Mas, de tempos em tempos, surge entre eles um homem de visão. Você compreende?

- Compreendo Senhor.

- Esse homem poderá entreter-nos. Se não for com seu gênio, ao menos com seus gracejos rústicos. Traga-o a Roma.

Fonte: Vida de Grandes Pintores – Ed. Globo, 1965.


 E assim ele foi. Mas, deixemos de acompanhar Giotto em sua belíssima e importante trajetória para observarmos as diferentes visões que tiveram o mensageiro e o Papa Bonifácio de um mesmo círculo vermelho.

Frequentemente, o termo “paradigma” é utilizado com sentido negativo, para indicar falta de reflexão ou senso crítico de alguém que se deixou levar pelo senso comum ou preconceito. Mas a questão é bem mais complexa. Querendo ou não, fazemos uso de paradigmas constantemente, toda vez que interagimos com os elementos que compõem a realidade em que vivemos. 

Um homem julga cada fenômeno com o qual se depara, ao longo da vida, conforme esse fenômeno se apresenta a ele e também de acordo com aquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou. Ou seja, entendemos e apreendemos o mundo à nossa volta com base nos modelos já estabelecidos, que nos dizem, constantemente, como as coisas são. Se encontramos, sobre uma folha de papel, um fino cilindro afunilado em uma das pontas, supomos logo que trata-se de uma caneta ou um lápis, independentemente das cores ou do material do qual é feito. Para alguém de outra cultura, ou épocas mais distantes, tal objeto seria apenas um mero cilindro afunilado em uma das pontas. Conta-se que os índios brasileiros custaram muito a perceber a chegada das caravelas portuguesas, pelo fato de que não conheciam nada parecido. Aquelas formas, flutuando no oceano, eram impossíveis para eles.

Sendo assim, quando nos deparamos com uma “anomalia”, há o que o psicólogo e filósofo William James chamou de “confusão atordoante e intensa”.

No campo científico, o estabelecimento de paradigmas é essencial para que não aconteça essa confusão atordoante, visto que modelos já conhecidos ajudam no preparo para a compreensão de novos fenômenos. Não há melhor exemplo desse pensamento do que a célebre afirmação de Newton, segundo a qual ele só era grande porque estava sobre os ombros de gigantes. Segundo o filósofo Thomas Khun, a ciência acadêmica é um constante acúmulo de conhecimentos, como uma sempre crescente construção, na qual cada cientista adiciona um novo bloco, começando de onde outro parou.

Mas, e nas artes? Será que a situação é a mesma? 
As escolas de arte e os grandes mestres poderiam levar à confirmação de tal hipótese. Afinal, é difícil encontrarmos artistas que nunca foram pressionados por padrões e expectativas estabelecidos e aceitos pela “academia” e pelo grande público. Além disso, é sabido que ninguém, de fato, poderia criar algo a partir do nada. O novo consiste em transformações a partir daquilo que já existe.
Mas o verdadeiro artista está comprometido com uma busca particular, a inalcançável satisfação das suas necessidades de expressão. Por lançar mão de uma visão incomum do mundo ao redor, o artista sente, em primeira mão, essa confusão atordoante. A falta de modelos para apoiar e embasar aquilo que ele mesmo percebe acaba transferindo suas inquietudes para o seu público, materializadas em um produto artístico.

Quase sempre, a revelação desse seu mundo interior causa o mesmo impacto que as caravelas portuguesas causaram aos índios brasileiros. Confusão e cegueira. Quebra de paradigmas.

A apreciação de uma grande obra de arte leva a uma imersão nas intenções do artista, em um processo de “adivinhação” de sua proposta. O estímulo e a satisfação da curiosidade em uma reflexão prazerosa fazem parte do jogo estético. O Papa, ao receber o trabalho do grande Giotto das mãos confusas do mensageiro, sabia disso.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Uma verdade conveniente



Contanto que fique pronto até o dia 31...

Há muito tempo...

... no Facebook de uma galáxia muito distante (clique para ampliar)...






Traduzido livremente daqui

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Pintura digital II

Alegoria inspirada pelo conceito do "eterno retorno", de Nietzsche (clique para ampliar):


O eterno retorno


"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo essa aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou, então, com terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

Nietzsche - A Gaia Ciência (1978: 208)







Reflita por um instante: Sua vida, até o dia de hoje, lhe é satisfatória o suficiente? Você aceitaria, de bom grado, o desafio do demônio de Nietzsche? Viveria, com alegria e entusiasmo, essa sua mesma vida, “ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?”

O conceito do eterno retorno é visto pelo próprio Nietzsche como um de seus pensamentos mais aterradores. Porém, por mais soturnas que tais perguntas, em princípio, possam soar, pode-se dizer que elas guardam em si a sólida visão ética de seu autor, para quem o homem é e será o juiz de sua própria existência, e deve estar atento às suas decisões, que, uma vez tomadas, valem para todo o sempre.

Nesse sentido, ele afirma que não se pode crescer sem que se tenha vencido medos e escalado declives. Somente a consciência de quem é, o que quer e o que pode fazer perante seu destino empurra o homem para cada vez mais longe de seus limites, da mediocridade tentadora e das preocupações e superstições inúteis de uma sociedade envenenada. Livre de todo o peso estéril, o homem que passa pela vida como um dançarino, um jogador, um aventureiro que acena afirmativamente e com segurança para o porvir, não conhecerá arrependimentos.

Se esse inusitado demônio corre o risco ou não de surgir diante de qualquer um de nós, realmente não importa. O importante é, através desse exercício especulativo, redescobrirmos, o quanto antes, o valor do tempo que nos cabe e o peso enorme das minúsculas coisas que fazem parte de nossa preciosa eternidade cotidiana. 

Os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas, mas como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais”.

Nietzsche

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Pinturas digitais

Estudos de personagem e ambiente para uma série de contos a ser publicada em breve...




Art Déco - Ainda viva, no fundo do oceano...

 
O movimento art déco foi uma mistura de vários estilos e propostas surgidas no início do século XX. Ele não afetou apenas a arquitetura, mas todas as artes plásticas e as chamadas artes aplicadas: móveis, esculturas, moda, joalheria e design gráfico.

O art déco possui esse nome porque não foi motivado por intenções filosóficas ou políticas. Sua proposta elegante e funcional era puramente decorativa. Pode ser visto como uma adaptação generalizada dos princípios do modernismo e da vanguarda do século XX, principalmente, da pintura cubista e suas formas geometrizadas. Predominam as linhas retas, triangulares ou circulares estilizadas e o design abstrato. Entre os motivos mais explorados estão os animais e as formas femininas. Nesse sentido, pode-se afirmar que o art déco foi uma tentativa de modernização da rebuscada art nouveau e suas linhas sinuosas e ornamentos florais.

O estilo aplicado a objetos, detalhes arquitetônicos e decoração de interiores

Inicialmente, o art déco apresenta-se como um estilo luxuoso, destinado à burguesia enriquecida, a despeito – ou por conta – da 1ª Guerra Mundial. Foi a época do jade, laca e marfim, das cores quentes, das confecções do estilista e decorador Paul Poiret, dos vestidos “abstratos” de Sonia Delaunay, dos vasos do conceituado René Lalique... A partir de meados da década de 30, o movimento passa a ser assimilado pelo ainda emergente mercado industrial, que utiliza materiais e formas passíveis de serem reproduzidos massivamente. Era a vez do concreto armado, do compensado de madeira e do aço tubular. O povo agora convivia com a estética art déco através de cartazes de publicidade, bijuterias, mobiliário e simples objetos de uso doméstico.    
Art déco na arquitetura - A marca das grandes metrópolis americanas no início do século XX

A despeito de suas origens francesas, os motivos e padrões art déco se expandiram rapidamente por toda a Europa e pelos Estados Unidos. Em relação à arquitetura, há diferenças entre o estilo utilizado em Miami – marcado por formas mais puras e pouca ornamentação - e o estilo utilizado em Nova Yorque e Chicago – ricamente ornamentado e dotado de elementos metálicos. 
 
 Art déco brasileira: Torre do Relógio da Central do Brasil, Estação Ferroviária em Goiânia e o Cristo Redentor, a maior escultura Art Déco do mundo

Pode-se situar o auge do art déco no louco período entre as duas Grandes Guerras, ou ainda, de 1920 a 1939. Mas, apesar de seu declínio a partir de então, sem esforços, observa-se ainda sua sólida influência através dos anos 40, cinquenta, ou mesmo 60. Na verdade, assim como ocorreu com muitos outros movimentos, sua influência permanece nos trabalhos de muitos artistas contemporâneos.

Releituras do estilo por artistas atuais

Esse é o caso dos jogos da franquia “Bioshock”. Destinados a serem dois dos mais bem sucedidos jogos da década, eles tem como cenário uma cidade submersa – Rapture, que significa êxtase - construída em uma década de 40 alternativa, para servir como o paraíso de uma elite intelectual. Porém, anos depois, quando o único sobrevivente de um acidente de avião descobre essa utopia submarina, encontra-a caótica e derrotada, ela própria uma entidade insana e curvada sobre si mesma. Os muros estão desmoronando. Aqui e ali, rachaduras nas abóbadas de vidro permitem a lenta, porém, inexorável, invasão das águas do oceano. Pelos corredores e salas amontoam-se cadáveres. Dentre os vivos, aqueles que foram, um dia, os melhores e mais brilhantes do mundo acima são agora loucos mutantes que correm cegamente pelos salões arruinados...

 Cenas de Bioshock: beleza entre ruínas, violência e caos...

 ...detalhes que dão forma a um mundo inesquecível

Ao desenhar a cidade, Hogarth De La Plante, principal artista conceitual dos ambientes do jogo, escolheu o visual art déco, influenciado pelos prédios de Manhattan. “Art déco foi um triunfo do homem sobre a natureza”, disse ele, acrescentando que muitas construções do jogo são monstruosas, não-naturais e possuem muitos ângulos retos que evocam a imagem de escadarias que as pessoas poderiam galgar para chegar ao paraíso.

O artista diz que esse é o visual perfeito, não apenas porque se encaixa na linha do tempo proposta pela história do jogo, mas porque “Rapture é uma cidade onde os homens são incríveis a ponto de construírem-na sob as águas, ambiente naturalmente hostil a eles”. De La Plante diz gostar da maneira como se encaixa o colapso físico da cidade, enquanto a sociedade em Rapture também desmorona.
 
Quem vive alguns momentos no universo do jogo percebe que todo o aspecto art déco de Bioshock não se restringe apenas à arquitetura. A decoração dos interiores e os objetos também sofreram significativa influência do estilo. Porém, após um mergulho mais profundo, percebe-se que Rapture é mais do que isso. Art déco ali não se limita à decoração. Cada cartaz, cada salão grandioso ou pequeno cômodo conta uma história. São fragmentos de um sonho fracassado que ligam jogador e obra sob um espectro emocional envolvente, que intensifica-se a cada nova descoberta. E ainda há mais. Há steampunk e futurismo. Há elementos contemporâneos, embora representados por metáforas. Há arte, que, por definição, se alimenta da vida e, por que não, dela própria, sempre e inevitavelmente emergindo diante de nós como algo único.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Livros de Artista

“Veja o mundo num grão de areia,
veja o céu em um campo florido,
Guarde o infinito na palma da mão,
E a eternidade em uma hora de vida!”

                                                                                   William Blake

O livro de artista é um tipo de produção que nasceu durante o movimento modernista, quando se começou a fazer uso de novos meios para a concretização da arte. Foi bastante utilizado por grandes nomes da época, como Marcel Duchamp, Kasimir Malevich, Vicente do Rego Monteiro e, principalmente, pelos artistas das chamadas “poéticas visuais”, que trabalham os aspectos gráficos e pictóricos das palavras, redescobrindo-as, também, como imagens.

Esse é um tipo de produção que explora  plasticamente as qualidades específicas do livro convencional, como a serialidade e o fluxo sequencial de ideias. Pode ser feito do papel mais barato ou mesmo de outro material, completamente diferente. Pode conter séries fotográficas, dobraduras, colagens, converter-se, quando aberto, em uma escultura de papel... Quanto à temática, seu caráter pode ser autobiográfico, filosófico, narrativo ou puramente estético.







 



Um flipbook é uma subespécie de livro de artista. É uma obra de arte encadernada como um livro, contendo, em cada página, imagens relacionadas entre si, planejadas para gerarem ilusões óticas – mais comumente, de movimento -  tão logo seja folheado.

Esse é o princípio dos desenhos animados. Fazer um flipbook, ou assistir ao funcionamento de um, pode ajudar bastante na compreensão dessa arte. De fato, não é raro encontrar crianças que já tenham feito sua própria animação, à caneta, nos cantos de seus cadernos escolares.





“Arco-íris em suas mãos” é o título do curioso flipbook criado pelo diretor de arte japonês Masashi Kawamura. O fascinante brinquedo de papel possui 36 páginas, totalmente negras, sobre as quais se alinham alguns pequenos quadrados coloridos. Apenas isso. Mas, ao se folhear o livro, descobre-se que este simples material basta para que surja, em pleno ar, um pequeno arco-íris:


Em vídeo pode-se observar melhor como se dá a impressionante ilusão:

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Metades*


Dualidade. Opostos. Doce e salgado, frio e calor. O mundo está repleto de metades fadadas a permanecerem separadas. A própria espécie humana parece ser a máxima expressão da luta constante entre partes antagônicas. Carne e espírito, razão e emoção, dor e prazeres, amor e ódio.

Somos instruídos desde cedo a lidar com os conceitos do bem e do mal. Escola e família proporcionam as vivências necessárias para a solidificação e aplicação de ambos. Nesse contexto, nos é ensinado a respeitar e tratar nossos semelhantes como a nós mesmos. Mas, que semelhantes são esses que  podem nos ser tão distintos, ao mesmo tempo? 

É fácil observar o surgimento de pequenos grupos já no ambiente escolar, todos regidos por rituais de aparências e afinidades, cuidadosamente expostas ou ocultadas. É o momento em que se inicia o hábito de classificar as pessoas para compreendê-las. Não se pensa, a esse ponto, que, quando pessoas se unem, geralmente o fazem contra algo ou alguém. É familiar a todos o diálogo que se segue à uma apresentação informal de estranhos. Indagam-se sobre times de futebol, signos, religiões, partidos políticos, comenta-se sobre gostos musicais... Tudo na esperança de que as respostas resultem na melhor representação possível daquele de quem nada se sabe. De acordo com o que revela, cada estranho é considerado “dos seus” pelo outro, ou não. Isso acontece tão frequentemente que há quem considere mais fácil criar personagens para si próprio, em conformidade com a amizade, o amor ou o emprego almejados. Ao Príncipe de Maquiavel, “não é necessário possuir todas as qualidades, mas é necessário parecer tê-las”.

Se fôssemos analisados por um alienígena, seríamos todos vistos como um enorme e único grupo, enquanto distintos de qualquer outro ser ou objeto. Mas, sob a pele, abrigamos personalidades e vontades infinitas, o que nos torna sujeitos, donos de conjuntos de experiências individuais, todas centradas na perspectiva do “eu” - logo, subjetivas.

Nem por dentro nem por fora somos seres estáticos. Corpo, rosto e personalidade, para melhor ou pior, mudam um pouco a cada dia.  Somos, como disse Sartre, criaturas condenadas a aprender a ser livres. E é o indivíduo a fonte de sua própria liberdade, seja ela ilusória ou não.

Para Descartes, a descoberta desse “eu”, único e livre, coincide com a descoberta da razão, uma vez que a percepção individual mostra-se como realidade pensante, a verdade indiscutível, a consciência. Podemos dizer, assim, que o “Penso, logo existo” satisfez uma parte do   “Conhece-te a ti mesmo”, ordenado ao futuro pela Grécia Clássica.

 Como poderíamos, então, alcançar a compreensão do “eu” do outro, uma vez que jamais teremos acesso à consciência de qualquer um, a não ser nossa própria? Para se ter uma noção do quão vasta é essa questão, basta a lembrança de que a palavra “pessoa” vem do latim, e significa “máscara”. 

Seria impossível, ainda que quiséssemos, mostrarmo-nos inteiramente ao mundo e, assim, sermos compreendidos pelos demais? Seria inevitável a construção de “máscaras” ao longo da vida, na melhor das hipóteses, apenas fragmentos de faces muito mais complexas?

Talvez daí surjam as metades. Porque somos invisíveis, uns aos outros. Porque cada um é um universo único, em formação, uma configuração que jamais se repetirá novamente, cujo ponto de vista jamais será compartilhado com mais ninguém. Porque, enquanto vamos descobrindo quem somos, damo-nos conta da distância entre o “eu”, que tanto conhecemos e o resto do mundo tão insondável e, não raro, o sentimento de injustiça aflora somente quando vemos a nós mesmos prejudicados em alguma situação.

Mas não se pode dizer se tais diversidades e divergências é que impulsionam o homem à frente, ou se andamos tão lentamente justamente porque cada um insiste em escolher sua própria direção e, às vezes, alguns ainda param pelo caminho para convencer os demais de que a sua é a estrada correta.
 
Por mais que se reconheça que uma profunda compreensão das diferenças e o tão desejado entendimento mútuo da humanidade são pouco mais que fantasias longe de concretizarem-se um dia, permanece a certeza de que coexistir é tão complicado quanto necessário. E mais: a felicidade real habita um lugar muito além de uma simples convivência pacífica. Só se chega nesse lugar com a entrega, com a sincera tentativa de deixar cair as máscaras e a busca desarmada pelo vislumbre da verdadeira amizade, da verdadeira justiça e do verdadeiro amor. Unir metades é, antes de tudo, um ato de confiança nos mistérios que se escondem além de nós mesmos.   

“Se restar em nós a mais leve ideia de certo e errado, então nosso espírito se perderá na confusão”.
Shinjinmei, texto  Zen-Budista, versículo 22



* Texto inspirado pela música "Half the World", da banda Rush


domingo, 19 de setembro de 2010

A última tempestade de Paul Cézanne

“O pai de todos nós”, segundo Picasso. Aquele que queria fazer do impressionismo “algo sólido e durável como a arte dos museus”. O homem que, submetendo a imaginação às leis da natureza, reorganizava a realidade à sua volta em suas telas. O artista que recusou o caminho simples da reprodução.

Levantamentos biográficos sobre o pós-impressionista Paul Cézanne existem em profusão. Fala-se das esferas, cones e cubos que ele via, latentes, em cada árvore ou maçã. Ou a maneira como sua arte abriu os olhos de seus sucessores, ou de como o público acabou abraçando suas obras, compreendendo, enfim, aquela relação tão ímpar entre artista e mundo.

Cézanne era muitas coisas. Solitário e tempestuoso; pintor de vanguarda e homem conservador; taciturno e apaixonado; um pêndulo que oscilou sem tréguas entre a rigidez do método e o impulso improvisador.
 
Há, igualmente, muito o que falar sobre ele. Histórias surreais como os conselhos da crítica da época, que orientava mulheres grávidas a evitarem a contemplação de suas obras, sob pena de seus filhos contraírem febre amarela. Ou a vez em que, mal recebido no célebre Salão de Bouguereau, Cézanne ajoelhou-se diante de Rodin e beijou-lhe a mão, pelo simples fato de o consagrado artista ter sido o único do lugar a lhe cumprimentar. Ou ainda, as 80 pinturas que fizera do monte Sainte-Victoire, em sua amada Provence.

Porém, após quase todas as descrições e argumentações sobre a importância do homem e do pintor, termina-se, normalmente, com um breve parágrafo, contendo algo assim: “Morreu de pneumonia, dias após ser pego por uma tempestade enquanto insistia em terminar um trabalho, nos campos”.

Não parece ser o bastante. Tão poucas palavras não são suficientes para traduzir tamanha demonstração de paixão pela arte, como ofício e como motivo, fonte de cada respiração, de cada relance de um olhar arguto que buscava desvendar as estruturas ocultas do mundo. Em qualquer biografia, esses momentos finais deveriam ser frisados e dramatizados, porque são como uma assinatura, tão vívida e cristalizada quanto o cenário de qualquer uma das obras por Cézanne deixadas.  

Sabe-se que o inverno de sua vida foi marcado por profunda meditação e solidão em Aix-en-Provence, lugar em que nascera e que, por fim, encontrou para ser ele mesmo. Após o falecimento de sua mãe, Cézanne desfizera-se de vez de seus laços pessoais. Separou-se de sua mulher e de seus amigos de infância e juventude. Tinha mais dificuldades do que nunca em se relacionar com as pessoas. Ele e sua pintura eram cada vez mais uma coisa só, totalmente absorvida pelos mistérios da modelagem das cores e formas.

A natureza havia sido, para ele, uma entidade muito complexa. Era sempre preciso um lento rito de reconhecimento de aparências, a princípio, invisíveis. Pode-se imaginar o artista esforçando-se em terminar aquela última pintura, em campo aberto, enquanto uma tempestade desabava sobre sua cabeça. Era 15 de outubro de 1906. A despeito de toda a sua obstinação, seu tempo já estava acabando. As águas desciam melancolicamente sobre seu corpo frágil e a tela pintada em sua mente nunca se revelou em tintas mundanas.

O que pensava e sentia esse velho Cézanne em seus últimos dias, desde quando se isolou de tudo até o momento em que desmaiava na estrada, finalmente derrotado pelas chuvas, e era socorrido por um motorista, que o levaria até sua casa? Talvez a única, ainda que pálida, representação do turbilhão que habitava seu espírito se dê com a leitura da carta que ele escrevera ao escritor e também pintor, Émile Bernard:


A ÉMILE BERNARD
Aix, 21 de setembro de 1906

Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo que, num dado momento, minha frágil razão venha a romper-se.  Depois do terrível calor que acabamos de sofrer, uma temperatura mais clemente restituiu um pouco de calma aos nossos espíritos, e já não era sem tempo; agora me parece que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido? É o que desejo, mas enquanto ele não é alcançado subsiste um vago mal-estar, que só poderá desaparecer depois que eu tiver chegado ao porto, ou seja, depois de ter realizado alguma coisa que se desenvolva melhor do que no passado e por isso mesmo provando teorias que, elas sim, são sempre fáceis; só a prova do que se pensa é que apresenta sérios obstáculos. Continuo, pois, os meus estudos. Mas acabo de reler sua carta e vejo que respondi sempre indiretamente. Queira desculpar-me; a causa disso é, como lhe disse, essa preocupação constante com o objetivo a ser atingido. Estudo sempre a partir da natureza e parece-me que progrido lentamente. Gostaria de ter você perto de mim, pois a solidão sempre pesa um pouco. Mas estou velho, doente, e jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar por paixões que lhes embrutecem os sentidos.

 Se tiver o prazer de reencontrá-lo um dia, poderemos explicarmo-nos melhor, de viva voz. Desculpe-me por voltar sempre ao mesmo ponto; mas acredito no desenvolvimento lógico do que vemos e sentimos através do estudo a partir da natureza, sob pena de ter de preocupar-me depois com os procedimentos; os procedimentos, para nós, não passam de simples meios de levar o público a sentir o que nós mesmos sentimos e de sermos aceitos. É o que devem ter feito os grandes que admiramos. Saudações do obstinado macróbio que lhe aperta cordialmente a mão.

Um mês depois de escrever as palavras acima, Cézanne já havia partido. Morrera pintando, tal como no juramento que fizera a si próprio.

Quanto ao reencontro com Bernard, ele realmente aconteceu, anos à frente, ainda que sob a forma da reconstituição de um diálogo entre os dois, intitulado “Une conversation avec Cézanne” e publicado no Mercuse de France, em 1921:

Bernard: O que acha dos mestres?
Cézanne: São bons, eu ia ao Louvre todas as manhãs quando estava em Paris. Mas acabei apegando-me mais à natureza do que a eles. É preciso aprender a ver por si mesmo.
Bernard: O que quer dizer com isso?
Cézanne: Devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como ninguém viu antes.
Bernard: Não resultará isso, numa visão demasiado pessoal, incompreensível aos outros? Afinal de contas, não é a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma língua que você. Será que me compreenderia se eu tivesse criado uma língua nova, desconhecida? É com esta língua comum que devemos expressar novas ideias. Talvez seja este o único meio de torná-las válidas e aceitáveis.
Cézanne: Por ótica quero dizer uma linguagem lógica, isto é, sem nada de absurdo.

Bernard: Mas em que baseia sua ótica, Mestre?
Cézanne: Na natureza.
Bernard: O que quer dizer com esta palavra? Trata-se de nossa natureza ou da natureza em si?
Cézanne: Trata-se de ambas.
Bernard: Portanto, o senhor concebe a arte como união do Universo como indivíduo?
Cézanne: Concebo-a como uma percepção pessoal. Coloco esta percepção na sensação e peço que a inteligência a organize numa obra.
Bernard: Mas de que sensações o senhor fala? Daquelas que estão em seus sentimentos ou daquelas que provêm da sua retina?
Cézanne: Acho que não pode haver separação entre elas. Além disso, sendo pintor, apego-me primeiro à sensação visual.


Se por toda a vida Cézanne lutou, solitário e tristemente, em busca da total harmonização entre seus olhos e seu mundo interior, ao menos os anos trataram de lhe conferir o valor que sempre mereceu. Graças ao seu legado, dali em diante, a chamada Arte Moderna, grávida de infinitas possibilidades, já podia começar. 

“A paisagem se reflete, se humaniza, se pensa em mim”. 
Paul Cézanne

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Helloween está chegando...

2010 tem sido um ano bastante agitado para quem gosta de heavy metal. Faltam ainda alguns meses para o calendário mudar e, no entanto, já tivemos de quase tudo – o que justifica um panorama mais completo e detalhado, em breve.

Em se tratando de lançamentos, neste ano grandes nomes finalmente começaram a aparecer com trabalhos inéditos, após um longo hiato: Angra, Avantasia, Blind Guardian, Iron Maiden, dentre alguns outros. Notícia melhor ainda é que, entre o excelente e o razoável, todas essas bandas realmente conseguiram agradar a maioria de seus fãs.

Os alemães do Helloween são os próximos da fila. Após “Unarmed”, que comemorou as bodas de prata da banda com releituras controversas dos maiores sucessos de sua carreira, eles prometem voltar de vez às graças do público com o vindouro “7 Sinners”:





Aguardemos, então, a roda do tempo girar. Só então, alguns anos no futuro, saberemos se 2010 viu realmente o nascimento de algum novo clássico do estilo, ou se foi apenas mais um passo a nos aproximar, lentamente, da fronteira final.

domingo, 12 de setembro de 2010

O idioma dos olhos

"Eu sou o único espectador desta rua; se eu deixar de ver, ela morrerá."
( Luiz Borges )

Quantas leituras pode-se fazer sobre uma imagem? Quantos símbolos, clichês e mesmo ardis, obstáculos à percepção, tem-se que desvendar com os olhos, antes de extrair informações de um quadro, uma fotografia? Que linguagem é essa, às vezes tão clara, outras, totalmente dependentes da subjetividade do observador? Que poderes ela possui?

"Tudo o que é reto mente. Toda verdade é sinuosa. O próprio tempo é um círculo."
( Friedrich Nietzsche )

Em princípio, pode-se pensar na quantidade imensa de estímulos visuais a que somos expostos diariamente em relação ao tempo de que, realmente, dispomos para lidar com eles. Há uma tendência em se preferir a superexposição em detrimento da seleção criteriosa, em se pensar que quanto mais, melhor.

Um olhar educado reconhece e diferencia níveis qualitativos nas imagens e acaba descartando o que não serve, evitando, assim, um “congestionamento mental”.  Com esse “filtro” visual, esse esvaziamento interno do que é irrelevante, é possível admitir que, sim, há informações demais. Convivemos com imagens inúteis demais.    

O domínio na percepção das imagens pode levar ainda mais além. Em outro estágio, o foco não é mais a fadiga mental pelo excesso de informações, e sim, o terreno perigoso das intenções subjacentes. A publicidade e a indústria cultural se utilizam dos avanços da ciência e, mais especificamente, da psicologia, que é a ciência do comportamento humano, para dirigir vontades e opiniões. Todos os dias surgem dogmas e paradigmas que são veiculados através de imagens e seguidos, respeitosamente, por milhares de cegos funcionais. De todos os lados, vem apelos e ordens silenciosas, às quais tendemos a nos acostumar.

Tudo isso pode ser dito, também, sobre o som, e os prejuízos existentes em uma audição desatenta e sem critérios. Mas, esse é um fenômeno que merece um raciocínio próprio, por ser bem mais complexo e bem menos individual. Como disse uma vez o compositor Murray Schafer: “Nossos ouvidos não têm pálpebras”.

É preciso um esforço para escapar do lugar-comum da leitura de imagens. Aprender a descartar, reorganizar e criar formas mentalmente. Alinhar a lógica e o coração ao olhar. Refletir e buscar significados escondidos. E, até mesmo, poesia onde, em princípio, não há nada.  

 
 
"Para existir grandes poetas, devem existir grandes espectadores também."
( Walt Whitman )

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O que se esconde na trilha sonora de "A Origem"?


O alemão Hans Zimmer é, hoje, um dos mais prolíficos e conhecidos compositores de trilhas sonoras para filmes. Desde o primeiro sucesso, o tema de “Rain Man” (1988), ele coleciona em seu extenso currículo, além de muitos outros, os temas de “A Rocha”, “Mar em Chamas”, “O Último Samurai”, “Gladiador”, “Hannibal”, “O Código Da Vinci”, “Anjos e Demônios”,  “Missão: Impossível 2”, “Sherlock Holmes”, o jogo “Call of Duty: Modern Warfare 2”, “Batman – O Cavaleiro das trevas”, este em conjunto com James Newton Howard, além do trabalho em parte da trilha de “Piratas do Caribe” e os arranjos de “My Winter Storm”, álbum de Tarja Turunen, ex-vocalista da banda Nightwish. 

O compositor desenvolveu um discurso musical inteligente e criativo, mesclando habilmente o clássico e o contemporâneo, onde sintetizadores unem-se a coro de vozes, guitarras sobrepõem-se a densos metais – John Marr, ex-guitarrista do grupo The Smiths, aparece como convidado em momentos da trilha de “A Origem”. Uma imponente orquestra sob melodias marcantes é uma de suas marcas registradas.

Seus últimos feitos o vêm conduzindo ao auge de sua carreira e, cometendo a heresia de compará-lo ao mestre John Willams, alguns de seus temas já são inesquecíveis e possuem vida própria, a despeito de serem pensados como engrenagens de uma máquina maior. 

Em “A Origem”, Zimmer compôs uma trilha, em princípio, simples, porém misteriosa e extremamente envolvente, emocional. Seu trabalho acrescenta ainda mais densidade à jornada de Dom Cobb, a qual, desde antes do lançamento do filme, é largamente discutida e já arregimentou fãs e defensores dispostos a “estudar” a fundo suas camadas, emulando, saudavelmente, o fenômeno “Matrix”.

Um desses fãs, de audição mais atenta, percebeu que o momento-chave da peça de Hans soa como uma versão em andamento lento da música “Non, je Regrette Rien”, cantada por Edith Piaf e que também integra a trilha sonora do filme.

Eis o vídeo postado por ele no YouTube, explicando didaticamente essa curiosidade:



“Como em um jogo, toda a música é composta por subdivisões e multiplicações dos elementos da canção de Edith Piaf”, admitiu o compositor em uma entrevista para o New York Times. “Eu já vi, e fiquei surpreso pelo tempo que levou para perceberem”, constata ele, sobre o vídeo.

Zimmer também disse que “Non, je Regrette Rien” estava indicada no script de “A Origem”. “Nolan (diretor do filme) sempre teve Edith Piaf em seu roteiro, aquele da-da, da-da”, explica o compositor. “Era como uma imensa buzina de nevoeiros sobre uma cidade, e mais tarde você talvez percebesse essa relação.”  

É óbvio a qualquer um que tenha entendido a proposta do filme, ou ainda, que seja familiarizado com o estilo do compositor, que o diálogo entre as peças está longe de ser um plágio simplório. Mais fácil ainda é constatar que Hans Zimmer conseguiu realizar em “A Origem” um trabalho profundo e genial, talvez, até aqui, o mais significativo de sua carreira.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sobre escrever - II

O escritor debruça-se sobre a mesa, animado. Sente-se iluminado por uma ideia que considera forte, significativa. Sim, talvez dali nasça um grande trabalho. Sem nenhum medo ou influência de sua autocrítica, ele rapidamente escreve sua ideia, como se a estivesse contando para alguém. Minutos depois, o escritor, silencioso, olha demoradamente para a meia página que preencheu. Sua mente agora está em branco.

Já foi dito aqui que, para que uma ideia cresça, é necessário, em primeiro lugar, materializá-la, sem cerimônias, seja na tela do Word, seja em uma folha de papel. Esse ato pode desencadear uma série de outros processos, levando facilmente à conclusão do trabalho. Ou pode resultar em uma lista de tópicos e textos inacabados, uma sinopse repleta de espaços a serem preenchidos e o pior, nenhum resquício de inspiração para seguir adiante. O que fazer, então, em segundo lugar?

Quando a inspiração se esgota, uma boa saída é pesquisar. Ou, lançando mão do jargão comum a quem trabalha com criação, é hora de buscar referências.

Buscar referências, friamente falando, é o ato de compilar informações e ideias acerca de um determinado tema. Não importa se o protagonista do futuro romance é um pirata ou um biólogo, é preciso adquirir embasamento para falar sobre ele. Nesse momento, tudo em volta pode servir. Notícias, revistas, livros, filmes... A lista é infinita. E a análise do material encontrado requer minuciosa atenção, bem como uma firme noção do que realmente se quer com ele.  Assim, evita-se a tentação de seguir sempre adaptando a ideia inicial às novas informações encontradas. Tal atitude impede o trabalho de avançar e o condena a andar em círculos, indefinidamente.

Como exemplos rápidos do uso bem-sucedido de referências, temos Da Vinci e seus estudos científicos sobre a natureza e anatomia; os vampiros do RPG de Rein-Hagen, que migraram diretamente dos livros de Anne Rice; George Lucas e as inúmeras citações que permeiam Star Wars, indo de filmes clássicos aos livros de fantasia de Tolkien; ou ainda, o próprio Tolkien e seu universo, uma consagrada releitura dos mitos da cultura nórdica. Enfim, há uma enormidade de artistas e obras largamente celebradas, cujas inspirações são bem conhecidas do público.

Isso acontece, virtualmente, em todo tipo de arte. Então, por que muitos escritores veem tal atividade quase como um ato ilícito?

Nesse caso, falta a percepção de que reproduzir partes de um trabalho já estabelecido (plágio) é algo muito diferente de tão somente “dissecá-lo”, estudá-lo. Entender os porquês de determinada informação, cena ou situação é o que faz encontrar nela algo que possa servir como gênese de novas ideias, novas possibilidades.

É preciso ter em mente que não se gera uma obra de arte a partir do nada. Criar é modificar aquilo que já existe. Quando nos acomete um pensamento que julgamos original, raramente percebemos que ele é o resultado da ebulição inconsciente de um denso amontoado de referências. Mais difícil ainda é fazer o caminho inverso e investigar exatamente onde, no fundo de nossa mente, ele foi fabricado. Mas, é possível “forçar” tal fenômeno.

Ainda assim, caso persista no escritor algum preconceito ao buscar inspiração em obras de contexto semelhante ao tema por ele trabalhado, pode-se ir ainda mais longe. Afinal, os dilemas humanos nunca mudam. O homem sempre lutou pela vida, por um amor ou contra a fome. Com espadas ou bombas, guerra é guerra. Abrindo um pouco a mente, é possível preencher lacunas persistentes com os materiais mais inusitados.

Digamos que o escritor deseje aprofundar-se no tema “gangues urbanas nos dias de hoje”. Se ele quiser abordar o preconceito ou a violência que vem da opressão, pode achar inspiração para conflitos, personagens, cenas e situações lendo sobre os povos bárbaros. Se, por outro lado, seu intento é mostrar pobreza e falta de perspectiva, algo sobre os subúrbios da Londres dos anos 60-70 pode ajudar bastante.

O trabalho com referências é apenas uma das várias outras técnicas largamente usadas como estímulo da criatividade. Outras mais serão temas para textos futuros. O escritor pode estudar e dominar cada uma delas e dispor sempre de preciosos recursos para horas mais áridas. Ou pode, simplesmente, seguir o ditado: “Inspiração não é combustão espontânea. Você deve incendiar a si próprio”.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Arte para não-curiosos (ou não)!



Michelangelo Roberti é um artista conceitual italiano. Ele desenvolveu uma maneira um tanto incomum de explorar aspectos da curiosidade humana com sua arte. Ele os coloca em uma caixa, e recebe um pagamento em troca da ideia.

Michelangelo vende cubos de madeira pintados de negro. Ele decidiu criar apenas 999 cubos para vender e, até agora, obteve bastante sucesso entre compradores de arte.

Os 999 cubos são todos iguais. Mesmo tamanho, forma, cor. Não há diferença exterior. Ninguém seria capaz de diferenciar um do outro. Então, por que eles tornam-se peças de arte tão interessantes?

A resposta está no interior de cada um. O artista garante que todos possuem algo por dentro, e o único jeito de saber o que é esse algo é destruindo a obra, tornando inútil conhecer seu conteúdo.

Colocando de outra forma: o comprador morre de curiosidade para saber o que faz seu cubo ser tão único, mas se abri-lo, perderá sua peça de arte. Verá todo o valor da obra se esvair, no momento em que olhar para o que ela esconde por dentro.

“Os cubos de madeira são a representação material da curiosidade humana”, diz o artista. “Eu imagino um homem, sentado em seu sofá, bebendo uma xícara de chá. Cada olhar de soslaio para o cubo traz à sua mente a mesma pergunta: O que tem lá dentro?”, completa ele.

A questão poderia realmente tornar-se um pesadelo para muitas pessoas. Você poderia imaginar a si próprio, tendo esse bonito cubo de madeira pintada de negro em algum lugar de sua casa, assombrado por uma curiosidade que não pode matar? Pensando por esse lado, a função conceitual para esse trabalho seria a de uma espécie de personal trainer da paciência.

Michelangelo torna tudo ainda mais intrigante, quando divulga que, quando todos os cubos forem vendidos, algo mais irá acontecer. Ele frisa apenas que conhecer o conteúdo dos cubos irá mudar o sentido de toda a experiência. Até agora, Roberti vendeu 60 dos 999 cubos. Esperemos para ver como os compradores irão se comportar, até lá.

Eis, abaixo, o conceito da obra, na íntegra:

“999 cubos negros de madeira. A forma, aparência e dimensões de todos os 999 são exatamente as mesmas. Dentro de cada cubo há algo... Essa coisa tem um significado preciso, enquanto permanece fechada dentro do cubo. Se você abrir o cubo, o sentido dessa coisa estará irreparavelmente perdido. A única maneira de possuir esse significado é deixando-o dentro do cubo... mas... isso é obviamente impossível!”