“O pai de todos nós”, segundo Picasso. Aquele que queria fazer do impressionismo “algo sólido e durável como a arte dos museus”. O homem que, submetendo a imaginação às leis da natureza, reorganizava a realidade à sua volta em suas telas. O artista que recusou o caminho simples da reprodução.
Levantamentos biográficos sobre o pós-impressionista Paul Cézanne existem em profusão. Fala-se das esferas, cones e cubos que ele via, latentes, em cada árvore ou maçã. Ou a maneira como sua arte abriu os olhos de seus sucessores, ou de como o público acabou abraçando suas obras, compreendendo, enfim, aquela relação tão ímpar entre artista e mundo.
Cézanne era muitas coisas. Solitário e tempestuoso; pintor de vanguarda e homem conservador; taciturno e apaixonado; um pêndulo que oscilou sem tréguas entre a rigidez do método e o impulso improvisador.
Levantamentos biográficos sobre o pós-impressionista Paul Cézanne existem em profusão. Fala-se das esferas, cones e cubos que ele via, latentes, em cada árvore ou maçã. Ou a maneira como sua arte abriu os olhos de seus sucessores, ou de como o público acabou abraçando suas obras, compreendendo, enfim, aquela relação tão ímpar entre artista e mundo.
Cézanne era muitas coisas. Solitário e tempestuoso; pintor de vanguarda e homem conservador; taciturno e apaixonado; um pêndulo que oscilou sem tréguas entre a rigidez do método e o impulso improvisador.
Há, igualmente, muito o que falar sobre ele. Histórias surreais como os conselhos da crítica da época, que orientava mulheres grávidas a evitarem a contemplação de suas obras, sob pena de seus filhos contraírem febre amarela. Ou a vez em que, mal recebido no célebre Salão de Bouguereau, Cézanne ajoelhou-se diante de Rodin e beijou-lhe a mão, pelo simples fato de o consagrado artista ter sido o único do lugar a lhe cumprimentar. Ou ainda, as 80 pinturas que fizera do monte Sainte-Victoire, em sua amada Provence.
Porém, após quase todas as descrições e argumentações sobre a importância do homem e do pintor, termina-se, normalmente, com um breve parágrafo, contendo algo assim: “Morreu de pneumonia, dias após ser pego por uma tempestade enquanto insistia em terminar um trabalho, nos campos”.
Porém, após quase todas as descrições e argumentações sobre a importância do homem e do pintor, termina-se, normalmente, com um breve parágrafo, contendo algo assim: “Morreu de pneumonia, dias após ser pego por uma tempestade enquanto insistia em terminar um trabalho, nos campos”.
Não parece ser o bastante. Tão poucas palavras não são suficientes para traduzir tamanha demonstração de paixão pela arte, como ofício e como motivo, fonte de cada respiração, de cada relance de um olhar arguto que buscava desvendar as estruturas ocultas do mundo. Em qualquer biografia, esses momentos finais deveriam ser frisados e dramatizados, porque são como uma assinatura, tão vívida e cristalizada quanto o cenário de qualquer uma das obras por Cézanne deixadas.
Sabe-se que o inverno de sua vida foi marcado por profunda meditação e solidão em Aix-en-Provence, lugar em que nascera e que, por fim, encontrou para ser ele mesmo. Após o falecimento de sua mãe, Cézanne desfizera-se de vez de seus laços pessoais. Separou-se de sua mulher e de seus amigos de infância e juventude. Tinha mais dificuldades do que nunca em se relacionar com as pessoas. Ele e sua pintura eram cada vez mais uma coisa só, totalmente absorvida pelos mistérios da modelagem das cores e formas.
A natureza havia sido, para ele, uma entidade muito complexa. Era sempre preciso um lento rito de reconhecimento de aparências, a princípio, invisíveis. Pode-se imaginar o artista esforçando-se em terminar aquela última pintura, em campo aberto, enquanto uma tempestade desabava sobre sua cabeça. Era 15 de outubro de 1906. A despeito de toda a sua obstinação, seu tempo já estava acabando. As águas desciam melancolicamente sobre seu corpo frágil e a tela pintada em sua mente nunca se revelou em tintas mundanas.
A natureza havia sido, para ele, uma entidade muito complexa. Era sempre preciso um lento rito de reconhecimento de aparências, a princípio, invisíveis. Pode-se imaginar o artista esforçando-se em terminar aquela última pintura, em campo aberto, enquanto uma tempestade desabava sobre sua cabeça. Era 15 de outubro de 1906. A despeito de toda a sua obstinação, seu tempo já estava acabando. As águas desciam melancolicamente sobre seu corpo frágil e a tela pintada em sua mente nunca se revelou em tintas mundanas.
O que pensava e sentia esse velho Cézanne em seus últimos dias, desde quando se isolou de tudo até o momento em que desmaiava na estrada, finalmente derrotado pelas chuvas, e era socorrido por um motorista, que o levaria até sua casa? Talvez a única, ainda que pálida, representação do turbilhão que habitava seu espírito se dê com a leitura da carta que ele escrevera ao escritor e também pintor, Émile Bernard:
A ÉMILE BERNARD
Aix, 21 de setembro de 1906
Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo que, num dado momento, minha frágil razão venha a romper-se. Depois do terrível calor que acabamos de sofrer, uma temperatura mais clemente restituiu um pouco de calma aos nossos espíritos, e já não era sem tempo; agora me parece que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido? É o que desejo, mas enquanto ele não é alcançado subsiste um vago mal-estar, que só poderá desaparecer depois que eu tiver chegado ao porto, ou seja, depois de ter realizado alguma coisa que se desenvolva melhor do que no passado e por isso mesmo provando teorias que, elas sim, são sempre fáceis; só a prova do que se pensa é que apresenta sérios obstáculos. Continuo, pois, os meus estudos. Mas acabo de reler sua carta e vejo que respondi sempre indiretamente. Queira desculpar-me; a causa disso é, como lhe disse, essa preocupação constante com o objetivo a ser atingido. Estudo sempre a partir da natureza e parece-me que progrido lentamente. Gostaria de ter você perto de mim, pois a solidão sempre pesa um pouco. Mas estou velho, doente, e jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar por paixões que lhes embrutecem os sentidos.
Aix, 21 de setembro de 1906
Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo que, num dado momento, minha frágil razão venha a romper-se. Depois do terrível calor que acabamos de sofrer, uma temperatura mais clemente restituiu um pouco de calma aos nossos espíritos, e já não era sem tempo; agora me parece que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido? É o que desejo, mas enquanto ele não é alcançado subsiste um vago mal-estar, que só poderá desaparecer depois que eu tiver chegado ao porto, ou seja, depois de ter realizado alguma coisa que se desenvolva melhor do que no passado e por isso mesmo provando teorias que, elas sim, são sempre fáceis; só a prova do que se pensa é que apresenta sérios obstáculos. Continuo, pois, os meus estudos. Mas acabo de reler sua carta e vejo que respondi sempre indiretamente. Queira desculpar-me; a causa disso é, como lhe disse, essa preocupação constante com o objetivo a ser atingido. Estudo sempre a partir da natureza e parece-me que progrido lentamente. Gostaria de ter você perto de mim, pois a solidão sempre pesa um pouco. Mas estou velho, doente, e jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar por paixões que lhes embrutecem os sentidos.
Se tiver o prazer de reencontrá-lo um dia, poderemos explicarmo-nos melhor, de viva voz. Desculpe-me por voltar sempre ao mesmo ponto; mas acredito no desenvolvimento lógico do que vemos e sentimos através do estudo a partir da natureza, sob pena de ter de preocupar-me depois com os procedimentos; os procedimentos, para nós, não passam de simples meios de levar o público a sentir o que nós mesmos sentimos e de sermos aceitos. É o que devem ter feito os grandes que admiramos. Saudações do obstinado macróbio que lhe aperta cordialmente a mão.
Um mês depois de escrever as palavras acima, Cézanne já havia partido. Morrera pintando, tal como no juramento que fizera a si próprio.
Quanto ao reencontro com Bernard, ele realmente aconteceu, anos à frente, ainda que sob a forma da reconstituição de um diálogo entre os dois, intitulado “Une conversation avec Cézanne” e publicado no Mercuse de France, em 1921:
Bernard: O que acha dos mestres?
Cézanne: São bons, eu ia ao Louvre todas as manhãs quando estava em Paris. Mas acabei apegando-me mais à natureza do que a eles. É preciso aprender a ver por si mesmo.
Bernard: O que quer dizer com isso?
Cézanne: Devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como ninguém viu antes.
Bernard: Não resultará isso, numa visão demasiado pessoal, incompreensível aos outros? Afinal de contas, não é a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma língua que você. Será que me compreenderia se eu tivesse criado uma língua nova, desconhecida? É com esta língua comum que devemos expressar novas ideias. Talvez seja este o único meio de torná-las válidas e aceitáveis.
Cézanne: Por ótica quero dizer uma linguagem lógica, isto é, sem nada de absurdo.
Um mês depois de escrever as palavras acima, Cézanne já havia partido. Morrera pintando, tal como no juramento que fizera a si próprio.
Quanto ao reencontro com Bernard, ele realmente aconteceu, anos à frente, ainda que sob a forma da reconstituição de um diálogo entre os dois, intitulado “Une conversation avec Cézanne” e publicado no Mercuse de France, em 1921:
Bernard: O que acha dos mestres?
Cézanne: São bons, eu ia ao Louvre todas as manhãs quando estava em Paris. Mas acabei apegando-me mais à natureza do que a eles. É preciso aprender a ver por si mesmo.
Bernard: O que quer dizer com isso?
Cézanne: Devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como ninguém viu antes.
Bernard: Não resultará isso, numa visão demasiado pessoal, incompreensível aos outros? Afinal de contas, não é a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma língua que você. Será que me compreenderia se eu tivesse criado uma língua nova, desconhecida? É com esta língua comum que devemos expressar novas ideias. Talvez seja este o único meio de torná-las válidas e aceitáveis.
Cézanne: Por ótica quero dizer uma linguagem lógica, isto é, sem nada de absurdo.
Bernard: Mas em que baseia sua ótica, Mestre?
Cézanne: Na natureza.
Bernard: O que quer dizer com esta palavra? Trata-se de nossa natureza ou da natureza em si?
Cézanne: Trata-se de ambas.
Bernard: Portanto, o senhor concebe a arte como união do Universo como indivíduo?
Cézanne: Concebo-a como uma percepção pessoal. Coloco esta percepção na sensação e peço que a inteligência a organize numa obra.
Bernard: Mas de que sensações o senhor fala? Daquelas que estão em seus sentimentos ou daquelas que provêm da sua retina?
Cézanne: Acho que não pode haver separação entre elas. Além disso, sendo pintor, apego-me primeiro à sensação visual.
Se por toda a vida Cézanne lutou, solitário e tristemente, em busca da total harmonização entre seus olhos e seu mundo interior, ao menos os anos trataram de lhe conferir o valor que sempre mereceu. Graças ao seu legado, dali em diante, a chamada Arte Moderna, grávida de infinitas possibilidades, já podia começar.
Cézanne: Na natureza.
Bernard: O que quer dizer com esta palavra? Trata-se de nossa natureza ou da natureza em si?
Cézanne: Trata-se de ambas.
Bernard: Portanto, o senhor concebe a arte como união do Universo como indivíduo?
Cézanne: Concebo-a como uma percepção pessoal. Coloco esta percepção na sensação e peço que a inteligência a organize numa obra.
Bernard: Mas de que sensações o senhor fala? Daquelas que estão em seus sentimentos ou daquelas que provêm da sua retina?
Cézanne: Acho que não pode haver separação entre elas. Além disso, sendo pintor, apego-me primeiro à sensação visual.
Se por toda a vida Cézanne lutou, solitário e tristemente, em busca da total harmonização entre seus olhos e seu mundo interior, ao menos os anos trataram de lhe conferir o valor que sempre mereceu. Graças ao seu legado, dali em diante, a chamada Arte Moderna, grávida de infinitas possibilidades, já podia começar.
“A paisagem se reflete, se humaniza, se pensa em mim”.
Paul Cézanne
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