domingo, 19 de setembro de 2010

A última tempestade de Paul Cézanne

“O pai de todos nós”, segundo Picasso. Aquele que queria fazer do impressionismo “algo sólido e durável como a arte dos museus”. O homem que, submetendo a imaginação às leis da natureza, reorganizava a realidade à sua volta em suas telas. O artista que recusou o caminho simples da reprodução.

Levantamentos biográficos sobre o pós-impressionista Paul Cézanne existem em profusão. Fala-se das esferas, cones e cubos que ele via, latentes, em cada árvore ou maçã. Ou a maneira como sua arte abriu os olhos de seus sucessores, ou de como o público acabou abraçando suas obras, compreendendo, enfim, aquela relação tão ímpar entre artista e mundo.

Cézanne era muitas coisas. Solitário e tempestuoso; pintor de vanguarda e homem conservador; taciturno e apaixonado; um pêndulo que oscilou sem tréguas entre a rigidez do método e o impulso improvisador.
 
Há, igualmente, muito o que falar sobre ele. Histórias surreais como os conselhos da crítica da época, que orientava mulheres grávidas a evitarem a contemplação de suas obras, sob pena de seus filhos contraírem febre amarela. Ou a vez em que, mal recebido no célebre Salão de Bouguereau, Cézanne ajoelhou-se diante de Rodin e beijou-lhe a mão, pelo simples fato de o consagrado artista ter sido o único do lugar a lhe cumprimentar. Ou ainda, as 80 pinturas que fizera do monte Sainte-Victoire, em sua amada Provence.

Porém, após quase todas as descrições e argumentações sobre a importância do homem e do pintor, termina-se, normalmente, com um breve parágrafo, contendo algo assim: “Morreu de pneumonia, dias após ser pego por uma tempestade enquanto insistia em terminar um trabalho, nos campos”.

Não parece ser o bastante. Tão poucas palavras não são suficientes para traduzir tamanha demonstração de paixão pela arte, como ofício e como motivo, fonte de cada respiração, de cada relance de um olhar arguto que buscava desvendar as estruturas ocultas do mundo. Em qualquer biografia, esses momentos finais deveriam ser frisados e dramatizados, porque são como uma assinatura, tão vívida e cristalizada quanto o cenário de qualquer uma das obras por Cézanne deixadas.  

Sabe-se que o inverno de sua vida foi marcado por profunda meditação e solidão em Aix-en-Provence, lugar em que nascera e que, por fim, encontrou para ser ele mesmo. Após o falecimento de sua mãe, Cézanne desfizera-se de vez de seus laços pessoais. Separou-se de sua mulher e de seus amigos de infância e juventude. Tinha mais dificuldades do que nunca em se relacionar com as pessoas. Ele e sua pintura eram cada vez mais uma coisa só, totalmente absorvida pelos mistérios da modelagem das cores e formas.

A natureza havia sido, para ele, uma entidade muito complexa. Era sempre preciso um lento rito de reconhecimento de aparências, a princípio, invisíveis. Pode-se imaginar o artista esforçando-se em terminar aquela última pintura, em campo aberto, enquanto uma tempestade desabava sobre sua cabeça. Era 15 de outubro de 1906. A despeito de toda a sua obstinação, seu tempo já estava acabando. As águas desciam melancolicamente sobre seu corpo frágil e a tela pintada em sua mente nunca se revelou em tintas mundanas.

O que pensava e sentia esse velho Cézanne em seus últimos dias, desde quando se isolou de tudo até o momento em que desmaiava na estrada, finalmente derrotado pelas chuvas, e era socorrido por um motorista, que o levaria até sua casa? Talvez a única, ainda que pálida, representação do turbilhão que habitava seu espírito se dê com a leitura da carta que ele escrevera ao escritor e também pintor, Émile Bernard:


A ÉMILE BERNARD
Aix, 21 de setembro de 1906

Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo que, num dado momento, minha frágil razão venha a romper-se.  Depois do terrível calor que acabamos de sofrer, uma temperatura mais clemente restituiu um pouco de calma aos nossos espíritos, e já não era sem tempo; agora me parece que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido? É o que desejo, mas enquanto ele não é alcançado subsiste um vago mal-estar, que só poderá desaparecer depois que eu tiver chegado ao porto, ou seja, depois de ter realizado alguma coisa que se desenvolva melhor do que no passado e por isso mesmo provando teorias que, elas sim, são sempre fáceis; só a prova do que se pensa é que apresenta sérios obstáculos. Continuo, pois, os meus estudos. Mas acabo de reler sua carta e vejo que respondi sempre indiretamente. Queira desculpar-me; a causa disso é, como lhe disse, essa preocupação constante com o objetivo a ser atingido. Estudo sempre a partir da natureza e parece-me que progrido lentamente. Gostaria de ter você perto de mim, pois a solidão sempre pesa um pouco. Mas estou velho, doente, e jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar por paixões que lhes embrutecem os sentidos.

 Se tiver o prazer de reencontrá-lo um dia, poderemos explicarmo-nos melhor, de viva voz. Desculpe-me por voltar sempre ao mesmo ponto; mas acredito no desenvolvimento lógico do que vemos e sentimos através do estudo a partir da natureza, sob pena de ter de preocupar-me depois com os procedimentos; os procedimentos, para nós, não passam de simples meios de levar o público a sentir o que nós mesmos sentimos e de sermos aceitos. É o que devem ter feito os grandes que admiramos. Saudações do obstinado macróbio que lhe aperta cordialmente a mão.

Um mês depois de escrever as palavras acima, Cézanne já havia partido. Morrera pintando, tal como no juramento que fizera a si próprio.

Quanto ao reencontro com Bernard, ele realmente aconteceu, anos à frente, ainda que sob a forma da reconstituição de um diálogo entre os dois, intitulado “Une conversation avec Cézanne” e publicado no Mercuse de France, em 1921:

Bernard: O que acha dos mestres?
Cézanne: São bons, eu ia ao Louvre todas as manhãs quando estava em Paris. Mas acabei apegando-me mais à natureza do que a eles. É preciso aprender a ver por si mesmo.
Bernard: O que quer dizer com isso?
Cézanne: Devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como ninguém viu antes.
Bernard: Não resultará isso, numa visão demasiado pessoal, incompreensível aos outros? Afinal de contas, não é a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma língua que você. Será que me compreenderia se eu tivesse criado uma língua nova, desconhecida? É com esta língua comum que devemos expressar novas ideias. Talvez seja este o único meio de torná-las válidas e aceitáveis.
Cézanne: Por ótica quero dizer uma linguagem lógica, isto é, sem nada de absurdo.

Bernard: Mas em que baseia sua ótica, Mestre?
Cézanne: Na natureza.
Bernard: O que quer dizer com esta palavra? Trata-se de nossa natureza ou da natureza em si?
Cézanne: Trata-se de ambas.
Bernard: Portanto, o senhor concebe a arte como união do Universo como indivíduo?
Cézanne: Concebo-a como uma percepção pessoal. Coloco esta percepção na sensação e peço que a inteligência a organize numa obra.
Bernard: Mas de que sensações o senhor fala? Daquelas que estão em seus sentimentos ou daquelas que provêm da sua retina?
Cézanne: Acho que não pode haver separação entre elas. Além disso, sendo pintor, apego-me primeiro à sensação visual.


Se por toda a vida Cézanne lutou, solitário e tristemente, em busca da total harmonização entre seus olhos e seu mundo interior, ao menos os anos trataram de lhe conferir o valor que sempre mereceu. Graças ao seu legado, dali em diante, a chamada Arte Moderna, grávida de infinitas possibilidades, já podia começar. 

“A paisagem se reflete, se humaniza, se pensa em mim”. 
Paul Cézanne

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