segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Jogos de Palavras




Quem gosta de escrever sabe da teimosia das palavras em sentarem-se quietas sobre seus significados. Palavras nomeiam tudo o que nos cerca, e, vá lá, um tanto daquilo que há dentro de nós. Isoladas, há pouco mais do que isso para elas. Corpo. Saudade. Sede. Água. Azul. E só.

Apenas quando percebe que o sentido não está realmente nas palavras, o escritor começa a ousar novos usos, novos lugares, novas formas de pastoreá-las e agrupá-las. Então surpreende-se como tão poucas sílabas podem dar origem a tão vastos universos. Porque, juntas em frases, palavras não são mais palavras, são ideias, pensamentos, composições de sons e signos que, agora sim, verdadeiramente refletem parte da alma de alguém.

As palavras sempre foram tão frágeis quanto rebeldes e volúveis. Às vezes, basta mudar-lhes uma vizinha para que todas as demais virem outra coisa, e então é um custo dar forma acabada ao que vagueia pelas neblinas do pensamento. Às vezes, a culpa é do leitor, e a palavra sai do papel ou da boca apenas para ser transformada, lá do outro lado, por olhos e ouvidos que não as viram nascer. Palavras são assim.

Mas quando o escritor aprende que não é preciso domá-las friamente, e sim escolher com cuidado os leitos onde pretende deitá-las, as palavras acabam aceitando alegremente tomar parte em seu rebanho.


Caso algumas delas, no caminho até aí, tenham lhe escapado, fica abaixo o rebanho de um pastor infinitamente melhor:

"A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolando em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. São instransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como se sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não 'tenho vontade de chorar' que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: 'tenho vontade de lágrimas'. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poema célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida. 'Tenho vontade de lágrimas'! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral."

Fernando Pessoa - O Livro do Desassossego

Nenhum comentário:

Postar um comentário