segunda-feira, 28 de março de 2011

Arte com café

Todo trabalho artístico implica no uso de determinados materiais e, em conjunto, uma abordagem técnica. A maioria dos artistas costuma valorizar e ponderar bastante sobre essa questão, pois sabe que o material utilizado para a realização de sua obra influencia seriamente o resultado obtido.

Em arte, a palavra "técnica" tem significado abrangente. Podemos relacionar esse termo à invenção ou ao uso de instrumentos e materiais, como também podemos aludir à habilidade ou método empregado pelo artista durante o processo de materialização daquilo que nasce em sua mente.  

O artista pode e deve ter liberdade para escolher o caminho que melhor irá satisfazer suas necessidades de expressão. Existem - e ainda estão para serem descobertas - infinitas técnicas, tanto quanto existem possibilidades materiais.

Humberto Freitas é um artista que faz pleno uso dessa liberdade. Dono de um traço e técnica excelentes, consegue imprimir um efeito bastante particular às suas ilustrações, graças ao material que escolheu para trabalhar: o café.

Observe esse exemplo, um crossover descontraído entre os universos do Aquático (He-Man) e do Bob Esponja:




Sem deixar que o conteúdo de suas obras exista apenas em função de seu método singular, Humberto expõe em seu blog, o cafecatura, um repertório interessante e variado: caricaturas, personalidades da web,  personagens de ficção, paisagens... 

Então, nas palavras inscritas no próprio site do artista:, "se você é daqueles que gosta de arte, criatividade, humor e não dispensa um delicioso café, vai apreciar o cafecatura."

Para conferir mais trabalhos como esse, acesse: http://cafecatura.blogspot.com/

Agora falta pouco...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Conto: Presente - Parte 1



Ei! Está acordado? Ah, que bom. Já estava começando a ficar preocupado. Venha. Segure minha mão para levantar. Vamos, você tem que me ajudar um pouco com isso. Afinal, tenho apenas a metade de seu tamanho. Não consegue, não é? Certo. Encoste aí, na parede, por um tempo. Fique tranquilo que eu estou de olho em tudo. Estive por aqui, vigiando, durante toda a noite. Minha avó sempre disse que eu era muito bom nisso. Olhos atentos, ela dizia.

 Eu sou Martin. Como se chama? Não se lembra? Tudo bem. É comum, hoje em dia. Você sabe, essas doenças esquisitas. De repente, é como a chegada de uma onda invisível, mudando tudo. Numa hora aparece um monte de gente tossindo sangue. Noutra, as mãos e pés incham tanto que chegam a explodir. E, agora, tem essa coisa com a memória. Todos parecem estar esquecendo tudo. As coisas vão mudando, e as pessoas, sumindo do mundo. Pois, é. Uma dessas ondas levou embora a minha velha avó, e me deixou sozinho. Sabe, por muitas vezes queria não lembrar de nada, como você.

Você está com fome? Eu também. Quanto a isso, não posso fazer nada. Não como direito há muito tempo. Após discutir muito com minha avó, o homem da carroça parou de passar por perto da nossa casa. Logo depois, eu descobri o motivo. Não possuíamos mais nada que pudéssemos trocar por comida. Desesperada, minha avó chegou a oferecer e ele nossos livros. Nós tínhamos três. Mas ele não aceitou. Não sabia o que fazer com eles. Engraçado, não é? Ele era velho, e não sabia ler. Eu sei. Minha avó não sossegou até me ensinar. Mas quando eu não estava com paciência, ou quando a fome era muito forte, ela apenas me chamava e contava histórias do mundo de antigamente.

Como as coisas foram bonitas um dia, eu te digo. É pena que você já não se lembre de nada. Pela sua idade, deve ter conhecido ao menos um pouco do mundo de antigamente. Coisas que eu não consigo sequer entender. As festas, as danças... Como poderia ser isso? Ah, havia música, também. Isso eu não sei mesmo o que era. Acho que era um som, feito especialmente para as pessoas ficarem se mexendo. Elas achavam bom, de alguma forma. Minha avó, pelo menos, gostava bastante de dançar. Embora nunca tenha visto ninguém dançando de verdade, na minha cabeça parece ser uma coisa maravilhosa. Ela tentou cantar para mim, uma vez, para me mostrar como era a música. Ela tentou, e tossiu muito, por muito tempo. Disse que já estava velha, e sua voz não era mais a mesma. Depois, bebeu, de uma só vez, quase meia garrafa de Relâmpago Azul, e fechou os olhos, com uma expressão aliviada. Eu continuei sem entender. Acho que música devia ser como o Relâmpago Azul. Não serve para muita coisa, mas as pessoas gostam mesmo assim, porque sentem alívio, porque descansam da realidade. Sei lá. Acho que estou com sono.

Sabe, não quero dormir em casa hoje. Não quero voltar nunca mais. Porque não tem mais nada lá. Minha casa era ali, do outro lado do túnel. Lá era seguro, na maior parte do tempo. Você sabe, as construções demolidas, cercando tudo. Raramente tivemos problemas com gente de fora. Quando era mais novo, achava que tínhamos sorte. Hoje vejo que poucos lugares são piores do que aquele para viver. Atrás dos prédios, há uma pequena aldeia. Umas quatro famílias, se ainda estão todos vivos. Parei de ter medo de bandidos querendo tomar nossa casa quando entendi que nós é que nunca tivemos forças para brigar por um lugar na aldeia. Éramos só nós dois, espremidos entre o entulho, entre as coisas que ninguém mais queria. Tem um grande tubo de metal onde dá para dormir, e um córrego marrom que passa perto dele. A minha avó gostava muito de ficar sentada ali, observando aquele pouquinho de água escorregar sem parar até uma fenda na parede mofada, do outro lado. Na verdade, não havia muito mais que ela pudesse fazer, na maior parte do dia. Desde que eu me lembro, ela já não andava direito.

Mas, espere um pouco. Falando assim, pode dar até uma impressão errada sobre ela. Ela tinha uma língua que trabalhava sem parar, e mãos que abanavam para todo lado, acompanhando cada palavra sua. Ela não precisava de pernas saudáveis para preencher totalmente aquele lugar. Nunca ouvi um só lamento sobre sua vida ou sua sorte. Mesmo quando as coisas começaram a piorar.

Até hoje eu ainda não entendi o que houve com ela. Talvez não haja mesmo como entender. Mas ela começou a ficar mais e mais distante,  quieta. Não reconhecia mais as coisas, não ouvia o que eu falava. Era como se não ligasse mais para a realidade. Pior. Parecia não ligar mais para mim.

Na época, eu achava que era a fome. Odiei com todas as forças o homem da carroça e, até mesmo, as pessoas lá do vilarejo. Mas eu tinha mais raiva mesmo era de mim. Eu não sou mais uma criancinha, afinal. Precisava fazer alguma coisa. E como eu queria ajudar! Encontrar uma maneira de melhorar a nossa vida.

Essa maneira surgiu diante de mim por acaso, em uma madrugada, nas águas frias e pegajosas do nosso córrego. Minha avó estava com febre, suava e delirava. Tinha muita sede. Eu me lembro de mergulhar uma lata vazia nas águas do córrego, e erguê-la, enojado. Ou ele estava se deteriorando muito rápido ou eu nunca havia reparado no odor que exalava. Não serviria aquela água à minha avó, doente como estava. Quem sabe, mais adiante, o curso da água não estivesse mais limpo?

O córrego surgia de uma caverna, feita com os restos de dois edifícios, tombados um contra o outro. Lembro-me que nunca me senti tão sozinho quanto naquela madrugada em que mergulhei os pés na água fria e mais escura que o céu. Estava profundamente triste. E, já naquela noite, sabia perfeitamente que não queria mais ficar ali. Era apertado demais, sujo demais. Acho que já lhe disse tudo isso. Não disse? Esquece. Deixe-me continuar.

Quando achei que já havia entrado o suficiente na caverna, mergulhei minha latinha novamente. E, do fundo dela, veio um barulho totalmente inesperado. Na mesma hora, ergui as mãos e tombei a lata, com cuidado, vedando a abertura com os dedos, impedindo a saída do que quer que tivesse caído ali dentro. Segundos depois, algo mais frio do que a água, mais suave ao toque do que o tecido mais novo e mais limpo, procurava abrigo no centro de minha mão em forma de concha.
Continua...

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Guerra da Arte: Táticas para o autor-general - Parte I

Sun Tzu foi um comandante chinês que, ao longo da vida, acumulou inúmeras vitórias graças à sua astúcia aguçada, sua disciplina e ao seu descomunal poder de liderança. Apenas por essas vitórias, ele já teria passado para a História como um grande filósofo-estrategista. Mas ele fez mais do que isso. Escreveu “A Arte da Guerra”, uma coleção de pensamentos decorrentes de suas experiências em situação de combate.

Podemos facilmente compreender que qualquer guerra depende, inevitavelmente, de estratégias, planejamentos, cálculos de riscos, uso inteligente de recursos, confrontos diretos ou indiretos com forças contrárias... assim como quase tudo de importante que se pretenda realizar na vida. Por isso, os escritos de Sun Tzu, hoje em dia, possuem uma aplicabilidade tão ampla que chegam a ser utilizados como base para o desenvolvimento de programas de treinamento esportivo, análises de modelos empresariais e até mesmo reflexões sobre relacionamentos.

Como “estamos no campo da história como no campo da linguagem ou do ser” (Merleau-Ponty), e se o próprio general chinês considera a guerra uma “arte”, vejamos se é possível, então, uma inversão de seu conceito. Imaginemos um escritor como um general de seus próprios personagens, atuando no campo de batalha que é o terreno vasto e incerto de sua imaginação, sob alguns dos princípios de Sun Tzu:

- Leva seu próprio material de guerra, mas também procura suprimentos no inimigo. Desta forma, o exército come o suficiente para atender às suas necessidades.

As referências são as maiores aliadas da inspiração. Uma boa pesquisa, em material ficcional ou não, pode enriquecer surpreendentemente a primeira ideia. O escritor nunca deve ter escrúpulos em, consciente ou inconscientemente, “procurar suprimentos no inimigo”, obviamente, respeitando-se os limites do que se caracterizaria como plágio. Aqui, há todo um post aprofundando melhor esse conceito. 

- Quando as circunstâncias favorecerem, deve-se modificar as estratégias.


Planejamento é algo essencial à maioria dos escritores. Quase sempre, o ato de se desenvolver uma narrativa fica muito mais fácil quando já se sabe aonde se quer chegar, bem como as etapas a serem cumpridas até lá. Porém, quando se faz arte, é comum o surgimento de novas possibilidades, tão logo iniciamos a etapa de execução. Como a escrita é um processo longo e constante, o escritor sempre corre o risco de ver o mundo que está desenvolvendo ganhar vida própria. Às vezes, um personagem adquire autonomia, conforme sua personalidade transforma-se em palavras, tornando-se mais complexo e importante para a trama; às vezes, algo observado no dia a dia acaba fornecendo uma referência de última hora que exigirá certas alterações no texto já escrito. Cabe ao autor enxergar esses desvios como “circunstâncias favoráveis” ou não para, então, julgar se deve seguir através deles. 

- Toda guerra está baseada no engano.

Essa é, provavelmente, a afirmação mais conhecida de Sun Tzu, e a mais imprescindível delas.  Parafraseando-a, podemos dizer que toda obra narrativa consiste em estabelecer perguntas e, então, tentar respondê-las do modo mais criativo, surpreendente e interessante possível.

O “engano”, em uma história, pode ser entendido como o “conflito”. Aquele ou aquilo que acaba se opondo às vontades e objetivos do protagonista, que quase nunca sabe exatamente o que está acontecendo. Logo, parece sensato pensar que nenhuma trama realmente se move enquanto um “engano”, um “conflito” não é plenamente estabelecido. 

- Ou seja, quando possuímos condições para atacar, devemos parecer inativos; quando estamos perto, devemos dar a impressão de que estamos longe; quando longe, precisamos fingir que estamos próximos.

Ainda desenvolvendo o raciocínio, uma vez criado o conflito, o autor começa o exercício de “enganar” o leitor, da melhor maneira possível. Nada deveria ser entregue facilmente, arranjado em cima de clichês ou passagens inverossímeis de tal forma que destoe do universo onde se passa a trama. O segredo, aqui, está em deixar o leitor sempre um passo atrás, quebrando expectativas, fornecendo informações que só irão se tornar úteis mais adiante... É claro que se deve ter em mente que, às vezes, a concretização de algo já antecipado pelo leitor é algo desejável, mas o abuso de tal recurso em uma história corre o risco de gerar desinteresse. 

- Use a isca para atrair o inimigo. Finja desordem e esmague-o.


Aqui, estamos falando do Ponto de Crise. Nessa fase, situada, mais ou menos, a dois terços da narrativa, a solução dos problemas do protagonista parecem mais distantes do que nunca, tanto a ele quanto ao leitor. É onde o escritor “finge desordem”, antes de resolver a turbulência que criou. Sendo assim, deve-se esforçar ao máximo para que a transição do Ponto de Crise para o Clímax – o momento onde o protagonista enfrenta seu conflito de forma mais intensa e grandiosa – seja marcante ao ponto de originar um final memorável para a história.

- Quando começar a verdadeira luta, se a vitória demorar a chegar, os homens perderão o ânimo e ficarão sem paixão pela causa.


O escritor não deve ter pena das pessoas que cria. Quanto mais fracas elas se colocam perante uma situação, maior é a curva dramática e o suspense obtidos. Porém, o exagero costuma roubar a identificação do leitor com o personagem. Ele deve ganhar algo, de vez em quando. Principalmente, após passado um Ponto de Crise. Poucos autores possuem habilidade suficiente para dar vida a “perdedores totais” realmente carismáticos.