sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sobre escrever - II

O escritor debruça-se sobre a mesa, animado. Sente-se iluminado por uma ideia que considera forte, significativa. Sim, talvez dali nasça um grande trabalho. Sem nenhum medo ou influência de sua autocrítica, ele rapidamente escreve sua ideia, como se a estivesse contando para alguém. Minutos depois, o escritor, silencioso, olha demoradamente para a meia página que preencheu. Sua mente agora está em branco.

Já foi dito aqui que, para que uma ideia cresça, é necessário, em primeiro lugar, materializá-la, sem cerimônias, seja na tela do Word, seja em uma folha de papel. Esse ato pode desencadear uma série de outros processos, levando facilmente à conclusão do trabalho. Ou pode resultar em uma lista de tópicos e textos inacabados, uma sinopse repleta de espaços a serem preenchidos e o pior, nenhum resquício de inspiração para seguir adiante. O que fazer, então, em segundo lugar?

Quando a inspiração se esgota, uma boa saída é pesquisar. Ou, lançando mão do jargão comum a quem trabalha com criação, é hora de buscar referências.

Buscar referências, friamente falando, é o ato de compilar informações e ideias acerca de um determinado tema. Não importa se o protagonista do futuro romance é um pirata ou um biólogo, é preciso adquirir embasamento para falar sobre ele. Nesse momento, tudo em volta pode servir. Notícias, revistas, livros, filmes... A lista é infinita. E a análise do material encontrado requer minuciosa atenção, bem como uma firme noção do que realmente se quer com ele.  Assim, evita-se a tentação de seguir sempre adaptando a ideia inicial às novas informações encontradas. Tal atitude impede o trabalho de avançar e o condena a andar em círculos, indefinidamente.

Como exemplos rápidos do uso bem-sucedido de referências, temos Da Vinci e seus estudos científicos sobre a natureza e anatomia; os vampiros do RPG de Rein-Hagen, que migraram diretamente dos livros de Anne Rice; George Lucas e as inúmeras citações que permeiam Star Wars, indo de filmes clássicos aos livros de fantasia de Tolkien; ou ainda, o próprio Tolkien e seu universo, uma consagrada releitura dos mitos da cultura nórdica. Enfim, há uma enormidade de artistas e obras largamente celebradas, cujas inspirações são bem conhecidas do público.

Isso acontece, virtualmente, em todo tipo de arte. Então, por que muitos escritores veem tal atividade quase como um ato ilícito?

Nesse caso, falta a percepção de que reproduzir partes de um trabalho já estabelecido (plágio) é algo muito diferente de tão somente “dissecá-lo”, estudá-lo. Entender os porquês de determinada informação, cena ou situação é o que faz encontrar nela algo que possa servir como gênese de novas ideias, novas possibilidades.

É preciso ter em mente que não se gera uma obra de arte a partir do nada. Criar é modificar aquilo que já existe. Quando nos acomete um pensamento que julgamos original, raramente percebemos que ele é o resultado da ebulição inconsciente de um denso amontoado de referências. Mais difícil ainda é fazer o caminho inverso e investigar exatamente onde, no fundo de nossa mente, ele foi fabricado. Mas, é possível “forçar” tal fenômeno.

Ainda assim, caso persista no escritor algum preconceito ao buscar inspiração em obras de contexto semelhante ao tema por ele trabalhado, pode-se ir ainda mais longe. Afinal, os dilemas humanos nunca mudam. O homem sempre lutou pela vida, por um amor ou contra a fome. Com espadas ou bombas, guerra é guerra. Abrindo um pouco a mente, é possível preencher lacunas persistentes com os materiais mais inusitados.

Digamos que o escritor deseje aprofundar-se no tema “gangues urbanas nos dias de hoje”. Se ele quiser abordar o preconceito ou a violência que vem da opressão, pode achar inspiração para conflitos, personagens, cenas e situações lendo sobre os povos bárbaros. Se, por outro lado, seu intento é mostrar pobreza e falta de perspectiva, algo sobre os subúrbios da Londres dos anos 60-70 pode ajudar bastante.

O trabalho com referências é apenas uma das várias outras técnicas largamente usadas como estímulo da criatividade. Outras mais serão temas para textos futuros. O escritor pode estudar e dominar cada uma delas e dispor sempre de preciosos recursos para horas mais áridas. Ou pode, simplesmente, seguir o ditado: “Inspiração não é combustão espontânea. Você deve incendiar a si próprio”.

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