quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Nos vemos na próxima...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Metades*


Dualidade. Opostos. Doce e salgado, frio e calor. O mundo está repleto de metades fadadas a permanecerem separadas. A própria espécie humana parece ser a máxima expressão da luta constante entre partes antagônicas. Carne e espírito, razão e emoção, dor e prazeres, amor e ódio.

Somos instruídos desde cedo a lidar com os conceitos do bem e do mal. Escola e família proporcionam as vivências necessárias para a solidificação e aplicação de ambos. Nesse contexto, nos é ensinado a respeitar e tratar nossos semelhantes como a nós mesmos. Mas, que semelhantes são esses que  podem nos ser tão distintos, ao mesmo tempo? 

É fácil observar o surgimento de pequenos grupos já no ambiente escolar, todos regidos por rituais de aparências e afinidades, cuidadosamente expostas ou ocultadas. É o momento em que se inicia o hábito de classificar as pessoas para compreendê-las. Não se pensa, a esse ponto, que, quando pessoas se unem, geralmente o fazem contra algo ou alguém. É familiar a todos o diálogo que se segue à uma apresentação informal de estranhos. Indagam-se sobre times de futebol, signos, religiões, partidos políticos, comenta-se sobre gostos musicais... Tudo na esperança de que as respostas resultem na melhor representação possível daquele de quem nada se sabe. De acordo com o que revela, cada estranho é considerado “dos seus” pelo outro, ou não. Isso acontece tão frequentemente que há quem considere mais fácil criar personagens para si próprio, em conformidade com a amizade, o amor ou o emprego almejados. Ao Príncipe de Maquiavel, “não é necessário possuir todas as qualidades, mas é necessário parecer tê-las”.

Se fôssemos analisados por um alienígena, seríamos todos vistos como um enorme e único grupo, enquanto distintos de qualquer outro ser ou objeto. Mas, sob a pele, abrigamos personalidades e vontades infinitas, o que nos torna sujeitos, donos de conjuntos de experiências individuais, todas centradas na perspectiva do “eu” - logo, subjetivas.

Nem por dentro nem por fora somos seres estáticos. Corpo, rosto e personalidade, para melhor ou pior, mudam um pouco a cada dia.  Somos, como disse Sartre, criaturas condenadas a aprender a ser livres. E é o indivíduo a fonte de sua própria liberdade, seja ela ilusória ou não.

Para Descartes, a descoberta desse “eu”, único e livre, coincide com a descoberta da razão, uma vez que a percepção individual mostra-se como realidade pensante, a verdade indiscutível, a consciência. Podemos dizer, assim, que o “Penso, logo existo” satisfez uma parte do   “Conhece-te a ti mesmo”, ordenado ao futuro pela Grécia Clássica.

 Como poderíamos, então, alcançar a compreensão do “eu” do outro, uma vez que jamais teremos acesso à consciência de qualquer um, a não ser nossa própria? Para se ter uma noção do quão vasta é essa questão, basta a lembrança de que a palavra “pessoa” vem do latim, e significa “máscara”. 

Seria impossível, ainda que quiséssemos, mostrarmo-nos inteiramente ao mundo e, assim, sermos compreendidos pelos demais? Seria inevitável a construção de “máscaras” ao longo da vida, na melhor das hipóteses, apenas fragmentos de faces muito mais complexas?

Talvez daí surjam as metades. Porque somos invisíveis, uns aos outros. Porque cada um é um universo único, em formação, uma configuração que jamais se repetirá novamente, cujo ponto de vista jamais será compartilhado com mais ninguém. Porque, enquanto vamos descobrindo quem somos, damo-nos conta da distância entre o “eu”, que tanto conhecemos e o resto do mundo tão insondável e, não raro, o sentimento de injustiça aflora somente quando vemos a nós mesmos prejudicados em alguma situação.

Mas não se pode dizer se tais diversidades e divergências é que impulsionam o homem à frente, ou se andamos tão lentamente justamente porque cada um insiste em escolher sua própria direção e, às vezes, alguns ainda param pelo caminho para convencer os demais de que a sua é a estrada correta.
 
Por mais que se reconheça que uma profunda compreensão das diferenças e o tão desejado entendimento mútuo da humanidade são pouco mais que fantasias longe de concretizarem-se um dia, permanece a certeza de que coexistir é tão complicado quanto necessário. E mais: a felicidade real habita um lugar muito além de uma simples convivência pacífica. Só se chega nesse lugar com a entrega, com a sincera tentativa de deixar cair as máscaras e a busca desarmada pelo vislumbre da verdadeira amizade, da verdadeira justiça e do verdadeiro amor. Unir metades é, antes de tudo, um ato de confiança nos mistérios que se escondem além de nós mesmos.   

“Se restar em nós a mais leve ideia de certo e errado, então nosso espírito se perderá na confusão”.
Shinjinmei, texto  Zen-Budista, versículo 22



* Texto inspirado pela música "Half the World", da banda Rush


domingo, 19 de setembro de 2010

A última tempestade de Paul Cézanne

“O pai de todos nós”, segundo Picasso. Aquele que queria fazer do impressionismo “algo sólido e durável como a arte dos museus”. O homem que, submetendo a imaginação às leis da natureza, reorganizava a realidade à sua volta em suas telas. O artista que recusou o caminho simples da reprodução.

Levantamentos biográficos sobre o pós-impressionista Paul Cézanne existem em profusão. Fala-se das esferas, cones e cubos que ele via, latentes, em cada árvore ou maçã. Ou a maneira como sua arte abriu os olhos de seus sucessores, ou de como o público acabou abraçando suas obras, compreendendo, enfim, aquela relação tão ímpar entre artista e mundo.

Cézanne era muitas coisas. Solitário e tempestuoso; pintor de vanguarda e homem conservador; taciturno e apaixonado; um pêndulo que oscilou sem tréguas entre a rigidez do método e o impulso improvisador.
 
Há, igualmente, muito o que falar sobre ele. Histórias surreais como os conselhos da crítica da época, que orientava mulheres grávidas a evitarem a contemplação de suas obras, sob pena de seus filhos contraírem febre amarela. Ou a vez em que, mal recebido no célebre Salão de Bouguereau, Cézanne ajoelhou-se diante de Rodin e beijou-lhe a mão, pelo simples fato de o consagrado artista ter sido o único do lugar a lhe cumprimentar. Ou ainda, as 80 pinturas que fizera do monte Sainte-Victoire, em sua amada Provence.

Porém, após quase todas as descrições e argumentações sobre a importância do homem e do pintor, termina-se, normalmente, com um breve parágrafo, contendo algo assim: “Morreu de pneumonia, dias após ser pego por uma tempestade enquanto insistia em terminar um trabalho, nos campos”.

Não parece ser o bastante. Tão poucas palavras não são suficientes para traduzir tamanha demonstração de paixão pela arte, como ofício e como motivo, fonte de cada respiração, de cada relance de um olhar arguto que buscava desvendar as estruturas ocultas do mundo. Em qualquer biografia, esses momentos finais deveriam ser frisados e dramatizados, porque são como uma assinatura, tão vívida e cristalizada quanto o cenário de qualquer uma das obras por Cézanne deixadas.  

Sabe-se que o inverno de sua vida foi marcado por profunda meditação e solidão em Aix-en-Provence, lugar em que nascera e que, por fim, encontrou para ser ele mesmo. Após o falecimento de sua mãe, Cézanne desfizera-se de vez de seus laços pessoais. Separou-se de sua mulher e de seus amigos de infância e juventude. Tinha mais dificuldades do que nunca em se relacionar com as pessoas. Ele e sua pintura eram cada vez mais uma coisa só, totalmente absorvida pelos mistérios da modelagem das cores e formas.

A natureza havia sido, para ele, uma entidade muito complexa. Era sempre preciso um lento rito de reconhecimento de aparências, a princípio, invisíveis. Pode-se imaginar o artista esforçando-se em terminar aquela última pintura, em campo aberto, enquanto uma tempestade desabava sobre sua cabeça. Era 15 de outubro de 1906. A despeito de toda a sua obstinação, seu tempo já estava acabando. As águas desciam melancolicamente sobre seu corpo frágil e a tela pintada em sua mente nunca se revelou em tintas mundanas.

O que pensava e sentia esse velho Cézanne em seus últimos dias, desde quando se isolou de tudo até o momento em que desmaiava na estrada, finalmente derrotado pelas chuvas, e era socorrido por um motorista, que o levaria até sua casa? Talvez a única, ainda que pálida, representação do turbilhão que habitava seu espírito se dê com a leitura da carta que ele escrevera ao escritor e também pintor, Émile Bernard:


A ÉMILE BERNARD
Aix, 21 de setembro de 1906

Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo que, num dado momento, minha frágil razão venha a romper-se.  Depois do terrível calor que acabamos de sofrer, uma temperatura mais clemente restituiu um pouco de calma aos nossos espíritos, e já não era sem tempo; agora me parece que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido? É o que desejo, mas enquanto ele não é alcançado subsiste um vago mal-estar, que só poderá desaparecer depois que eu tiver chegado ao porto, ou seja, depois de ter realizado alguma coisa que se desenvolva melhor do que no passado e por isso mesmo provando teorias que, elas sim, são sempre fáceis; só a prova do que se pensa é que apresenta sérios obstáculos. Continuo, pois, os meus estudos. Mas acabo de reler sua carta e vejo que respondi sempre indiretamente. Queira desculpar-me; a causa disso é, como lhe disse, essa preocupação constante com o objetivo a ser atingido. Estudo sempre a partir da natureza e parece-me que progrido lentamente. Gostaria de ter você perto de mim, pois a solidão sempre pesa um pouco. Mas estou velho, doente, e jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar por paixões que lhes embrutecem os sentidos.

 Se tiver o prazer de reencontrá-lo um dia, poderemos explicarmo-nos melhor, de viva voz. Desculpe-me por voltar sempre ao mesmo ponto; mas acredito no desenvolvimento lógico do que vemos e sentimos através do estudo a partir da natureza, sob pena de ter de preocupar-me depois com os procedimentos; os procedimentos, para nós, não passam de simples meios de levar o público a sentir o que nós mesmos sentimos e de sermos aceitos. É o que devem ter feito os grandes que admiramos. Saudações do obstinado macróbio que lhe aperta cordialmente a mão.

Um mês depois de escrever as palavras acima, Cézanne já havia partido. Morrera pintando, tal como no juramento que fizera a si próprio.

Quanto ao reencontro com Bernard, ele realmente aconteceu, anos à frente, ainda que sob a forma da reconstituição de um diálogo entre os dois, intitulado “Une conversation avec Cézanne” e publicado no Mercuse de France, em 1921:

Bernard: O que acha dos mestres?
Cézanne: São bons, eu ia ao Louvre todas as manhãs quando estava em Paris. Mas acabei apegando-me mais à natureza do que a eles. É preciso aprender a ver por si mesmo.
Bernard: O que quer dizer com isso?
Cézanne: Devemos criar uma ótica, devemos ver a natureza como ninguém viu antes.
Bernard: Não resultará isso, numa visão demasiado pessoal, incompreensível aos outros? Afinal de contas, não é a pintura como a fala? Quando falo, uso a mesma língua que você. Será que me compreenderia se eu tivesse criado uma língua nova, desconhecida? É com esta língua comum que devemos expressar novas ideias. Talvez seja este o único meio de torná-las válidas e aceitáveis.
Cézanne: Por ótica quero dizer uma linguagem lógica, isto é, sem nada de absurdo.

Bernard: Mas em que baseia sua ótica, Mestre?
Cézanne: Na natureza.
Bernard: O que quer dizer com esta palavra? Trata-se de nossa natureza ou da natureza em si?
Cézanne: Trata-se de ambas.
Bernard: Portanto, o senhor concebe a arte como união do Universo como indivíduo?
Cézanne: Concebo-a como uma percepção pessoal. Coloco esta percepção na sensação e peço que a inteligência a organize numa obra.
Bernard: Mas de que sensações o senhor fala? Daquelas que estão em seus sentimentos ou daquelas que provêm da sua retina?
Cézanne: Acho que não pode haver separação entre elas. Além disso, sendo pintor, apego-me primeiro à sensação visual.


Se por toda a vida Cézanne lutou, solitário e tristemente, em busca da total harmonização entre seus olhos e seu mundo interior, ao menos os anos trataram de lhe conferir o valor que sempre mereceu. Graças ao seu legado, dali em diante, a chamada Arte Moderna, grávida de infinitas possibilidades, já podia começar. 

“A paisagem se reflete, se humaniza, se pensa em mim”. 
Paul Cézanne

terça-feira, 14 de setembro de 2010

O Helloween está chegando...

2010 tem sido um ano bastante agitado para quem gosta de heavy metal. Faltam ainda alguns meses para o calendário mudar e, no entanto, já tivemos de quase tudo – o que justifica um panorama mais completo e detalhado, em breve.

Em se tratando de lançamentos, neste ano grandes nomes finalmente começaram a aparecer com trabalhos inéditos, após um longo hiato: Angra, Avantasia, Blind Guardian, Iron Maiden, dentre alguns outros. Notícia melhor ainda é que, entre o excelente e o razoável, todas essas bandas realmente conseguiram agradar a maioria de seus fãs.

Os alemães do Helloween são os próximos da fila. Após “Unarmed”, que comemorou as bodas de prata da banda com releituras controversas dos maiores sucessos de sua carreira, eles prometem voltar de vez às graças do público com o vindouro “7 Sinners”:





Aguardemos, então, a roda do tempo girar. Só então, alguns anos no futuro, saberemos se 2010 viu realmente o nascimento de algum novo clássico do estilo, ou se foi apenas mais um passo a nos aproximar, lentamente, da fronteira final.

domingo, 12 de setembro de 2010

O idioma dos olhos

"Eu sou o único espectador desta rua; se eu deixar de ver, ela morrerá."
( Luiz Borges )

Quantas leituras pode-se fazer sobre uma imagem? Quantos símbolos, clichês e mesmo ardis, obstáculos à percepção, tem-se que desvendar com os olhos, antes de extrair informações de um quadro, uma fotografia? Que linguagem é essa, às vezes tão clara, outras, totalmente dependentes da subjetividade do observador? Que poderes ela possui?

"Tudo o que é reto mente. Toda verdade é sinuosa. O próprio tempo é um círculo."
( Friedrich Nietzsche )

Em princípio, pode-se pensar na quantidade imensa de estímulos visuais a que somos expostos diariamente em relação ao tempo de que, realmente, dispomos para lidar com eles. Há uma tendência em se preferir a superexposição em detrimento da seleção criteriosa, em se pensar que quanto mais, melhor.

Um olhar educado reconhece e diferencia níveis qualitativos nas imagens e acaba descartando o que não serve, evitando, assim, um “congestionamento mental”.  Com esse “filtro” visual, esse esvaziamento interno do que é irrelevante, é possível admitir que, sim, há informações demais. Convivemos com imagens inúteis demais.    

O domínio na percepção das imagens pode levar ainda mais além. Em outro estágio, o foco não é mais a fadiga mental pelo excesso de informações, e sim, o terreno perigoso das intenções subjacentes. A publicidade e a indústria cultural se utilizam dos avanços da ciência e, mais especificamente, da psicologia, que é a ciência do comportamento humano, para dirigir vontades e opiniões. Todos os dias surgem dogmas e paradigmas que são veiculados através de imagens e seguidos, respeitosamente, por milhares de cegos funcionais. De todos os lados, vem apelos e ordens silenciosas, às quais tendemos a nos acostumar.

Tudo isso pode ser dito, também, sobre o som, e os prejuízos existentes em uma audição desatenta e sem critérios. Mas, esse é um fenômeno que merece um raciocínio próprio, por ser bem mais complexo e bem menos individual. Como disse uma vez o compositor Murray Schafer: “Nossos ouvidos não têm pálpebras”.

É preciso um esforço para escapar do lugar-comum da leitura de imagens. Aprender a descartar, reorganizar e criar formas mentalmente. Alinhar a lógica e o coração ao olhar. Refletir e buscar significados escondidos. E, até mesmo, poesia onde, em princípio, não há nada.  

 
 
"Para existir grandes poetas, devem existir grandes espectadores também."
( Walt Whitman )

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O que se esconde na trilha sonora de "A Origem"?


O alemão Hans Zimmer é, hoje, um dos mais prolíficos e conhecidos compositores de trilhas sonoras para filmes. Desde o primeiro sucesso, o tema de “Rain Man” (1988), ele coleciona em seu extenso currículo, além de muitos outros, os temas de “A Rocha”, “Mar em Chamas”, “O Último Samurai”, “Gladiador”, “Hannibal”, “O Código Da Vinci”, “Anjos e Demônios”,  “Missão: Impossível 2”, “Sherlock Holmes”, o jogo “Call of Duty: Modern Warfare 2”, “Batman – O Cavaleiro das trevas”, este em conjunto com James Newton Howard, além do trabalho em parte da trilha de “Piratas do Caribe” e os arranjos de “My Winter Storm”, álbum de Tarja Turunen, ex-vocalista da banda Nightwish. 

O compositor desenvolveu um discurso musical inteligente e criativo, mesclando habilmente o clássico e o contemporâneo, onde sintetizadores unem-se a coro de vozes, guitarras sobrepõem-se a densos metais – John Marr, ex-guitarrista do grupo The Smiths, aparece como convidado em momentos da trilha de “A Origem”. Uma imponente orquestra sob melodias marcantes é uma de suas marcas registradas.

Seus últimos feitos o vêm conduzindo ao auge de sua carreira e, cometendo a heresia de compará-lo ao mestre John Willams, alguns de seus temas já são inesquecíveis e possuem vida própria, a despeito de serem pensados como engrenagens de uma máquina maior. 

Em “A Origem”, Zimmer compôs uma trilha, em princípio, simples, porém misteriosa e extremamente envolvente, emocional. Seu trabalho acrescenta ainda mais densidade à jornada de Dom Cobb, a qual, desde antes do lançamento do filme, é largamente discutida e já arregimentou fãs e defensores dispostos a “estudar” a fundo suas camadas, emulando, saudavelmente, o fenômeno “Matrix”.

Um desses fãs, de audição mais atenta, percebeu que o momento-chave da peça de Hans soa como uma versão em andamento lento da música “Non, je Regrette Rien”, cantada por Edith Piaf e que também integra a trilha sonora do filme.

Eis o vídeo postado por ele no YouTube, explicando didaticamente essa curiosidade:



“Como em um jogo, toda a música é composta por subdivisões e multiplicações dos elementos da canção de Edith Piaf”, admitiu o compositor em uma entrevista para o New York Times. “Eu já vi, e fiquei surpreso pelo tempo que levou para perceberem”, constata ele, sobre o vídeo.

Zimmer também disse que “Non, je Regrette Rien” estava indicada no script de “A Origem”. “Nolan (diretor do filme) sempre teve Edith Piaf em seu roteiro, aquele da-da, da-da”, explica o compositor. “Era como uma imensa buzina de nevoeiros sobre uma cidade, e mais tarde você talvez percebesse essa relação.”  

É óbvio a qualquer um que tenha entendido a proposta do filme, ou ainda, que seja familiarizado com o estilo do compositor, que o diálogo entre as peças está longe de ser um plágio simplório. Mais fácil ainda é constatar que Hans Zimmer conseguiu realizar em “A Origem” um trabalho profundo e genial, talvez, até aqui, o mais significativo de sua carreira.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sobre escrever - II

O escritor debruça-se sobre a mesa, animado. Sente-se iluminado por uma ideia que considera forte, significativa. Sim, talvez dali nasça um grande trabalho. Sem nenhum medo ou influência de sua autocrítica, ele rapidamente escreve sua ideia, como se a estivesse contando para alguém. Minutos depois, o escritor, silencioso, olha demoradamente para a meia página que preencheu. Sua mente agora está em branco.

Já foi dito aqui que, para que uma ideia cresça, é necessário, em primeiro lugar, materializá-la, sem cerimônias, seja na tela do Word, seja em uma folha de papel. Esse ato pode desencadear uma série de outros processos, levando facilmente à conclusão do trabalho. Ou pode resultar em uma lista de tópicos e textos inacabados, uma sinopse repleta de espaços a serem preenchidos e o pior, nenhum resquício de inspiração para seguir adiante. O que fazer, então, em segundo lugar?

Quando a inspiração se esgota, uma boa saída é pesquisar. Ou, lançando mão do jargão comum a quem trabalha com criação, é hora de buscar referências.

Buscar referências, friamente falando, é o ato de compilar informações e ideias acerca de um determinado tema. Não importa se o protagonista do futuro romance é um pirata ou um biólogo, é preciso adquirir embasamento para falar sobre ele. Nesse momento, tudo em volta pode servir. Notícias, revistas, livros, filmes... A lista é infinita. E a análise do material encontrado requer minuciosa atenção, bem como uma firme noção do que realmente se quer com ele.  Assim, evita-se a tentação de seguir sempre adaptando a ideia inicial às novas informações encontradas. Tal atitude impede o trabalho de avançar e o condena a andar em círculos, indefinidamente.

Como exemplos rápidos do uso bem-sucedido de referências, temos Da Vinci e seus estudos científicos sobre a natureza e anatomia; os vampiros do RPG de Rein-Hagen, que migraram diretamente dos livros de Anne Rice; George Lucas e as inúmeras citações que permeiam Star Wars, indo de filmes clássicos aos livros de fantasia de Tolkien; ou ainda, o próprio Tolkien e seu universo, uma consagrada releitura dos mitos da cultura nórdica. Enfim, há uma enormidade de artistas e obras largamente celebradas, cujas inspirações são bem conhecidas do público.

Isso acontece, virtualmente, em todo tipo de arte. Então, por que muitos escritores veem tal atividade quase como um ato ilícito?

Nesse caso, falta a percepção de que reproduzir partes de um trabalho já estabelecido (plágio) é algo muito diferente de tão somente “dissecá-lo”, estudá-lo. Entender os porquês de determinada informação, cena ou situação é o que faz encontrar nela algo que possa servir como gênese de novas ideias, novas possibilidades.

É preciso ter em mente que não se gera uma obra de arte a partir do nada. Criar é modificar aquilo que já existe. Quando nos acomete um pensamento que julgamos original, raramente percebemos que ele é o resultado da ebulição inconsciente de um denso amontoado de referências. Mais difícil ainda é fazer o caminho inverso e investigar exatamente onde, no fundo de nossa mente, ele foi fabricado. Mas, é possível “forçar” tal fenômeno.

Ainda assim, caso persista no escritor algum preconceito ao buscar inspiração em obras de contexto semelhante ao tema por ele trabalhado, pode-se ir ainda mais longe. Afinal, os dilemas humanos nunca mudam. O homem sempre lutou pela vida, por um amor ou contra a fome. Com espadas ou bombas, guerra é guerra. Abrindo um pouco a mente, é possível preencher lacunas persistentes com os materiais mais inusitados.

Digamos que o escritor deseje aprofundar-se no tema “gangues urbanas nos dias de hoje”. Se ele quiser abordar o preconceito ou a violência que vem da opressão, pode achar inspiração para conflitos, personagens, cenas e situações lendo sobre os povos bárbaros. Se, por outro lado, seu intento é mostrar pobreza e falta de perspectiva, algo sobre os subúrbios da Londres dos anos 60-70 pode ajudar bastante.

O trabalho com referências é apenas uma das várias outras técnicas largamente usadas como estímulo da criatividade. Outras mais serão temas para textos futuros. O escritor pode estudar e dominar cada uma delas e dispor sempre de preciosos recursos para horas mais áridas. Ou pode, simplesmente, seguir o ditado: “Inspiração não é combustão espontânea. Você deve incendiar a si próprio”.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Arte para não-curiosos (ou não)!



Michelangelo Roberti é um artista conceitual italiano. Ele desenvolveu uma maneira um tanto incomum de explorar aspectos da curiosidade humana com sua arte. Ele os coloca em uma caixa, e recebe um pagamento em troca da ideia.

Michelangelo vende cubos de madeira pintados de negro. Ele decidiu criar apenas 999 cubos para vender e, até agora, obteve bastante sucesso entre compradores de arte.

Os 999 cubos são todos iguais. Mesmo tamanho, forma, cor. Não há diferença exterior. Ninguém seria capaz de diferenciar um do outro. Então, por que eles tornam-se peças de arte tão interessantes?

A resposta está no interior de cada um. O artista garante que todos possuem algo por dentro, e o único jeito de saber o que é esse algo é destruindo a obra, tornando inútil conhecer seu conteúdo.

Colocando de outra forma: o comprador morre de curiosidade para saber o que faz seu cubo ser tão único, mas se abri-lo, perderá sua peça de arte. Verá todo o valor da obra se esvair, no momento em que olhar para o que ela esconde por dentro.

“Os cubos de madeira são a representação material da curiosidade humana”, diz o artista. “Eu imagino um homem, sentado em seu sofá, bebendo uma xícara de chá. Cada olhar de soslaio para o cubo traz à sua mente a mesma pergunta: O que tem lá dentro?”, completa ele.

A questão poderia realmente tornar-se um pesadelo para muitas pessoas. Você poderia imaginar a si próprio, tendo esse bonito cubo de madeira pintada de negro em algum lugar de sua casa, assombrado por uma curiosidade que não pode matar? Pensando por esse lado, a função conceitual para esse trabalho seria a de uma espécie de personal trainer da paciência.

Michelangelo torna tudo ainda mais intrigante, quando divulga que, quando todos os cubos forem vendidos, algo mais irá acontecer. Ele frisa apenas que conhecer o conteúdo dos cubos irá mudar o sentido de toda a experiência. Até agora, Roberti vendeu 60 dos 999 cubos. Esperemos para ver como os compradores irão se comportar, até lá.

Eis, abaixo, o conceito da obra, na íntegra:

“999 cubos negros de madeira. A forma, aparência e dimensões de todos os 999 são exatamente as mesmas. Dentro de cada cubo há algo... Essa coisa tem um significado preciso, enquanto permanece fechada dentro do cubo. Se você abrir o cubo, o sentido dessa coisa estará irreparavelmente perdido. A única maneira de possuir esse significado é deixando-o dentro do cubo... mas... isso é obviamente impossível!”