segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Conto: Impossível


Nada é impossível nesse mundo, meu amigo. Não para mim. E se você estiver disposto a me ajudar, verá com seus próprios olhos. 

Sim, eu estava realmente indo para Outrora, a Cidade Dourada. Roubar? Mas é claro que não! Já lhe disse, e muito me entristeço por você não acreditar. Estava em uma importante missão real. É que o Rei confia muito em mim. O motivo? Olha, não sou de ficar falando, mas... Digamos que meu nobre patriarca, eventualmente, precisa de minhas habilidades para lidar com certos assuntos sigilosos. Está bem, está bem. Ele possui negócios no submundo e eu os gerencio. Satisfeito? Como assim, truque? Por mais riquezas que pudesse conseguir no interior da cidade, não sou o tipo de ladrãozinho vulgar que arriscaria a vida tentando um truque tão estúpido desses. É claro que se eu não tivesse motivos realmente sérios, jamais tentaria sequer contornar aquelas muralhas de perto. Mas eu lhe disse. Olhe só para mim. Um homem como eu, em missão real. Parece impossível, mas, comigo, acontece o tempo todo. Bem, minha atual situação permite uma confissão: Minha missão seria muito melhor recompensada se, de repente, algo de valor voltasse comigo, bem escondido, em minha bolsa... 

Como lhe disse, ainda era madrugada quando deixei Vraslien. E, no meio da manhã, já no fim da Estrada Plana, o tempo não me agradava nem um pouco. Talvez aquela mancha amarelada flutuando no horizonte tivesse influenciado o meu humor. A última coisa que queria àquela altura era estar no caminho de uma nuvem de âmbar, principalmente porque, a partir dali, teria que abandonar minha montaria. 

Venci o primeiro dos montes rochosos que pontuavam o restante do caminho e, lá de cima, enquanto batia as mãos sujas em minhas vestes, percebi que Outrora já era visível. Meu peito congelou. Poderia não ser tão fácil quanto eu quisesse. Certamente haveria perguntas e desconfiança. Você está certo. Não existe mesmo nada em mim que me torne digno de vislumbrar o interior da nobre Outrora. Como, então, eu pretendia assegurar minha entrada? Naquele instante, enquanto eu levava uma das mãos ao peito, refazia a mim mesmo essa pergunta. O toque frio e liso da pérola azul que pendia de meu pescoço tranquilizou-me novamente. Acredite se quiser, meu amigo. Eu viajava até Outrora carregando, orgulhosamente, a Máxima Credencial, um lendário Cordão da Lealdade. Tudo o que eu tinha que fazer era exibi-lo ao chefe da guarda e ele, boquiaberto, sairia do meu caminho, diante de prova tão inegável de retidão de caráter e fidelidade ao trono.

Até aquele momento, eu avançara devagar, pois ainda era cedo. Desci outro monte, atravessei o pequeno vale sombrio que me separava do seguinte e recomecei a escalar. Na próxima vez em que mirei o horizonte, vi que a nuvem de âmbar já se estendia, ameaçadora, por cima das montanhas mais próximas. Era uma das grandes. O que está dizendo? É claro que existem nuvens de âmbar nessa época do ano. Vejo que vai muito pouco àquelas terras, meu amigo. De qualquer forma, não foi a primeira vez nem será a última que terei de lidar com uma delas. Percebi que não teria muito tempo até que ela me alcançasse. Por isso, comecei logo a me preparar. 

Deixei aquela rocha alta para trás e, por sorte, me vi em uma depressão ainda mais profunda e sombria do que a anterior. Tirei minha espada, que, como quase todas as armas de Vraslien, é feita de prata pura e, com esforço, finquei-a fortemente no chão duro. Ora, você não sabe? Prata é o único material existente que ajuda a amenizar os males causados pela nuvem de âmbar. Você não conhece mesmo muito da vida, não é mesmo? Não me admira ter vindo parar aqui... Como dizia, após posicionar minha espada, sentei-me junto a ela, sobre minha bolsa, abrigado pela sólida silhueta da rocha de cujo topo viera. Agora era só esperar um pouco. Só isso. Com sorte, a nuvem seguiria seu caminho sem me causar maiores danos. Mas então eu a ouvi. Aquela voz delicada e cristalina chegou até mim, ainda que a nuvem já estivesse perto, rosnando incessantemente como uma fera. Não sou nenhum herói, mas, não com certa relutância, resolvi deixar a segurança de meu abrigo. 

Encontrei-a em uma cratera rasa, poucos metros à frente, com pavor estampado em seu rosto branco. Estava deitada, segurando um dos pés, que deveria estar torcido ou quebrado. Àquela altura, o vento parecia querer nos levantar do chão. Já não havia tempo para pensar nem fazer nada, exceto carregá-la até a segurança de minha espada, cujo brilho frio era um farol a se destacar contra a paisagem desfocada e escurecida. 

Chegamos a tempo. Recostei-a onde eu estava e, de olhos fechados, envolvi-a em meus braços, segurando firme o punho da espada. Ela encolheu o corpo como um pequeno animal e aninhou a cabeça em meu peito. 

Sentindo seu calor, pouco me ative ao que ocorria ao meu redor. E eu lhe digo: tivemos sorte. A julgar pelo seu tamanho, a nuvem até que passou rápido, deixando apenas alguns arranhões para trás. Quando abri os olhos, encontrei os dela, brilhando tão intensamente quanto o núcleo da massa etérea que seguia seu caminho às nossas costas. Rapidamente, tudo se acalmou novamente. Era hora de ir. 

Juntei minhas coisas e a amparei, fazendo-a andar ao meu lado. Perguntei-lhe se ela estava bem. Depois, seu nome. Por último, o que fazia ali. Silêncio foi tudo o que obtive. Desisti. Passei o restante do caminho pensando em como agir para que ela entrasse comigo em Outrora. Desisti disso também. Pensei que bastariam meus talentos para o improviso, quando a hora chegasse. Certamente, alguma coisa aconteceria, e, dali, tiraria minha inspiração. De fato, algo aconteceu. Algo que eu nunca seria capaz de prever. 

A poucos metros do portão principal, ela, que precisou do apoio de meu corpo cansado para dar cada passo, disparou com leveza e desenvoltura em minha frente. Gritava, um desespero evidente na voz, enquanto seguia direto para onde estavam as sentinelas. Segundos depois, toda a guarda da muralha externa já se mobilizara e estava pronta para pôr um fim rápido a qualquer incidente. 

Minhas pernas pararam. Ainda não havia compreendido a situação, tampouco sabia o que fazer. Seria ela uma louca, ou suicida? Reuni forças e coragem para correr e alcançá-la, mas quando ela deslizou pelo chão arenoso e parou, se ajoelhando a poucos centímetros dos dois imensos guardas do portão principal, desviei o rosto, antevendo sua morte rápida, provavelmente por decapitação. Ao chegar tão perto assim das muralhas douradas, sem permissão alguma, ela selara seu fim. Mas nada parecido com isso aconteceu. Ao contrário. De onde estava, assisti, atônito, enquanto os guardas ergueram-na gentilmente do chão e a conduziram para dentro. Pouco antes de desaparecer, ganhando o cobiçado interior da cidade Dourada, cenário dos sonhos de todos os ladrões, ela apontou para mim. Tal gesto impeliu os guardas a correr, como um adestrador faria com cães. 

Tentei manter a calma. No fim de tudo, as coisas poderiam até se ajeitar. Levei a mão ao pescoço, buscando o colar dado a mim pelo Rei. No segundo em que meus dedos encontraram apenas minha pele arranhada e encharcada de suor, entendi como ela conseguiu sua entrada na Cidade Dourada. Aos olhos dos guardas, eu, um homem honrado, em missão real, não passava de um simples bandoleiro, perseguindo uma donzela solitária e indefesa. 

Agora, tudo o que eu quero é sair dessa prisão, encontrar uma maneira de entrar em Outrora e, por fim, me vingar daquela ladra miserável que fez com que eu viesse parar neste buraco. O quê? Está me dizendo que é impossível sair daqui? Não para mim, meu amigo. Não para mim.  

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